A CONCEPÇÃO DE IDEOLOGIA NA TEORIA CRÍTICA: TRÊS GERAÇÕES DE PENSADORES
DISCENTE: JOSIELICE DOS SANTOS ALMEIDA; ORIENTADOR: ARIM SOARES DO BEM
Josielice dos Santos Almeida - TCC - Licenciatura.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS/LICENCIATURA
Josielice dos Santos Almeida
A CONCEPÇÃO DE IDEOLOGIA NA TEORIA CRÍTICA:
TRÊS GERAÇÕES DE PENSADORES
Maceió/ AL
2018
Josielice dos Santos Almeida
A CONCEPÇÃO DE IDEOLOGIA NA TEORIA CRÍTICA:
TRÊS GERAÇÕES DE PENSADORES
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao Instituto de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Alagoas como
requisito final para a obtenção do título de
licenciatura em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Arim Soares do Bem
Maceió/ AL
2018
Folha de Aprovação
Josielice dos Santos Almeida
A CONCEPÇÃO DE IDEOLOGIA NA TEORIA CRÍTICA:
TRÊS GERAÇÕES DE PENSADORES
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de
Alagoas como requisito final para a
obtenção do título de licenciatura em
Ciências Sociais.
Aprovada em: ____, _________ de 2018
________________________________________________
Prof. Dr. Arim Soares do Bem – UFAL
(Orientador)
Banca Examinadora:
________________________________________________
Profa. Dra. Alice Anabuki Plancherel – UFAL
________________________________________________
Profa. Dra. Marina Félix de Melo – UFAL
Agradecimentos
Construir vínculos afetivos num percurso de formação acadêmica é
circunstância importante da qual depende toda uma rede de trocas e desenvolvimento
de conhecimentos, de formação e de enriquecimento humano. Em minha trajetória
acadêmica tive a felicidade de conviver com pessoas às quais hoje sou imensamente
grata e que de outra forma eu não poderia aqui, neste trabalho que finalmente ganha
forma, me expressar.
Sou profundamente grata à minha mãe Rosilda por sempre, ao seu modo,
estar presente.
Gratidão a quem desde o início e antes mesmo da graduação sempre esteve
ao meu lado como fonte de inspiração, incentivo, encorajamento e apoio – meu
companheiro Arenato – parceiro não só neste percurso acadêmico, mas também
neste caminho maior que é a vida.
Agradeço às/aos amigas/os Ana Cláudia, Ana Luísa, Romualdo, Kleyton,
Larissa, Cris, Charlyelle, Albany, Jhonatan e Amália, pessoas com as quais tive o
prazer de conviver e compartilhar trajetórias no Instituto de Ciências Sociais
ICS/UFAL. Sou grata em especial à minha amiga Tanísia, exemplo de força, dedicação
e por quem tenho profunda admiração.
Expresso especial gratidão ao professor Arim Soares do Bem, referência de ser
humano e de profissional que, além de me ter apresentado essa temática que tanto
me fascinou, também orientou este trabalho e, de forma tão generosa, não poupou
paciência e atenção às minhas dificuldades. Sem sua ajuda, certamente, nada seria
possível.
Agradeço a todas/os as/os professora/es do Instituto de Ciências Sociais que,
direta ou indiretamente, contribuíram com a minha formação (tenho em especial
lembrança a professora Jordânia por seu carisma e motivação nas aulas). Meu muito
obrigada também às professoras Alice Anabuki e Marina Félix que, com suas
observações e leitura atenta, contribuíram com a produção final deste estudo.
Não poderia deixar de registrar meus sinceros agradecimentos ao Grupo
Cidadania e Políticas Públicas na pessoa do professor Ranulfo Paranhos; à
professora Evelina Antunes, supervisora de minha atuação no PIBID; e, do mesmo
modo, ao professor que orientou minhas atividades de monitoria, professor Wendell
Ficher, exemplos de profissionais cujas boas vontades em contribuir com minha
formação sempre serão por mim lembrados.
Agradeço também aos profissionais técnicos do ICS, em especial ao Lelan por
seu trabalho na coordenação do ICS tão cheio de humanidade.
Por fim, em meio a essa terrível crise política e institucional que estamos
atravessando, em que vivenciamos um processo de desmonte de políticas e
programas sociais por um governo ilegítimo no poder, não poderia deixar de dizer que
minha formação em Ciências Sociais não seria possível senão através de uma
universidade que oferecesse programas de assistência estudantil. Ao dizer isso me
dirijo com gratidão a todas/os que fazem a Universidade Federal de Alagoas, em
particular aos que contribuem na defesa de uma universidade pública e gratuita.
Resumo
O presente trabalho desenvolve uma discussão sobre as diversas abordagens acerca
do conceito de ideologia entre os principais expoentes de três gerações da Teoria
Crítica vinculados à Escola de Frankfurt – Horkheimer, Adorno, Habermas e Honneth
–, teóricos significativos do século XX e início do século XXI. A discussão proposta é
resultado de uma investigação de natureza qualitativa, de caráter bibliográfico e que
também apoiou-se, em parte, em análises de fontes históricas. Constituiu-se como
objetivo central deste trabalho analisar as especificidades dos usos do conceito de
ideologia através das mudanças paradigmáticas e geracionais da Teoria Crítica, entre
os seus mais relevantes representantes. Para este propósito, foi desenvolvida uma
reconstrução do conceito de ideologia a partir de uma seleção de obras significativas
dos autores supracitados, demonstrando-se o caráter polêmico e polissêmico deste
conceito e dando visibilidade às especificidades dos diferentes sistemas teóricos que
configuram representações singulares da Teoria Crítica.
Palavras-chave: Ideologia. Teoria Crítica. Escola de Frankfurt. Teoria Social
Contemporânea.
Resumen
El presente trabajo desarrolla una discusión sobre las diferentes maneras de abordar
el concepto de ideología entre los principales exponentes de tres generaciones de la
Teoría Crítica vinculados con la Escuela de Frankfurt – Horkheimer, Adorno, Habermas
y Honneth –, teóricos significativos del siglo XX e inicio del siglo XXI. La discusión que
se plantea es el resultado de una investigación de naturaleza cualitativa, de carácter
bibliográfico, que también se apoyó, en parte, en análisis de fuentes históricas. Se
constituye como objetivo central de este trabajo analizar las particularidades de los
usos del concepto de ideología a través de los cambios paradigmáticos y
generacionales de la Teoría Crítica por parte de sus representantes más relevantes.
Para este propósito, se desarrolló una reconstrucción del concepto de ideología a
partir de una selección de obras significativas de los autores previamente citados,
demostrándose el carácter polémico y polisémico de este concepto, y dándose
destaque a las particularidades de los diferentes sistemas teóricos que configuran
representaciones singulares de la Teoría Crítica.
Palabras llave: Ideología. Teoría Crítica. Escuela de Frankfurt. Teoría Social
Contemporánea.
O que induz homens e mulheres a confundir-se,
de tempos em tempos, com deuses ou vermes é
a ideologia.
(Terry Eagleton)
Sumário
Introdução...................................………....……..………...……......…….………….…. 09
1 Os tortuosos itinerários da ideologia: um breve traçado histórico.……………...…. 13
2 As Teorias da ideologia e a Teoria Crítica: interfaces possíveis?....……....….…..... 22
3 Adorno e Horkheimer: a Teoria Crítica e a crítica da “razão instrumental”….…..... 32
4 Jürgen Habermas e a fundação da razão comunicativa..………….…..………..…. 40
5 Axel Honneth e o reconhecimento enquanto ideologia………………...……....…… 45
Considerações finais .………………………………………………….…...….….……… 51
Referências bibliográficas .……………………………………………………….…....… 53
9
Introdução
Este trabalho é resultado de reflexões ligadas a uma série de atividades por
nós desenvolvidas através da Linha de pesquisa Ideologia, cultura e reprodução
social, vinculada ao Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre Autoritarismo,
Violência e Criminalidade – GETAVIC, coordenado pelo prof. Dr Arim Soares do Bem,
a saber: participação na disciplina eletiva Introdução às Teorias sobre a Ideologia
(2015); atuação como bolsista no projeto Introdução às teorias sobre ideologia
vinculado ao Programa de Iniciação Científica CNPq/UFAL/FAPEAL (2015/2016);1 e
ouvinte na disciplina Intersubjetividade e Esferas do Reconhecimento em Axel
Honneth (2016/2017) – ambas as atividades ministradas/coordenadas pelo Prof. Dr
Arim Soares do Bem.
O presente trabalho deu continuidade e expansão às reflexões inicialmente
desenvolvidas no subprojeto “Reconstrução do debate sobre a ideologia em Adorno,
Horkheimer, Althusser, Marcuse e Habermas”, que integrou o projeto Introdução às
teorias sobre ideologia.2 Esse subprojeto teve como objetivo reconstruir as linhas
gerais do debate acerca da ideologia na forma de uma introdução às teorias nas quais
se sustentam tal debate entre autores significativos do século XX, analisando-se as
principais contribuições sobre a ideologia nos seguintes autores: Theodor Adorno,
Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Louis Althusser e Jürgen Habermas, estudiosos
que operaram dentro de uma tradição não exclusivamente marxista. Além de
identificar as particularidades sobre o tema da ideologia presentes nos sistemas
teóricos destes autores, a pesquisa também pretendeu inquirir sobre o material do
ponto de vista teórico, metodológico e epistemológico, demonstrando o caráter
polêmico e polissêmico do conceito de ideologia.
Já para as reflexões desenvolvidas neste trabalho, com vistas a um novo
recorte teórico, demandou-se a inclusão de Axel Honneth, atualmente um dos mais
expressivos representantes da terceira geração da Teoria Crítica; assim como o
1 O projeto mencionado, apresentado por nós no XXVI Encontro de Iniciação Científica da Universidade
Federal de Alagoas, recebeu a premiação de Excelência Acadêmica do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação (PIBIC) da Universidade Federal de Alagoas, ciclo 2015/2016, no ano de 2016.
2
O projeto Introdução às teorias sobre ideologia, desenvolvido no âmbito do Programa Institucional
Científica – PIBIC e coordenado pelo prof. Dr. Arim Soares do Bem, também foi integrado por outro
subprojeto que reconstruiu, por sua vez, as linhas gerais do debate sobre a ideologia entre os autores
que operam dentro de uma tradição marxista. No conjunto, este projeto analisou as contribuições
seminais sobre a ideologia entre os seguintes autores: Marx (e Engels), Lenin, Lukács, Mannheim,
Gramsci, Adorno, Horkheimer, Althusser, Marcuse e Habermas.
10
redirecionamento do enfoque da discussão inicial sobre os autores Herbert Marcuse
e Louis Althusser para um segundo plano. Herbert Marcuse, importante integrante da
Escola de Frankfurt e um dos principais expoentes da primeira geração da Teoria
Crítica, apesar de não figurar entre os autores que compuseram o corpus deste
estudo, teve suas reflexões referenciadas e criticadas a partir do texto de Habermas
aqui analisado, o qual foi profundamente influenciado por Marcuse. Já no caso de
Althusser, o seu deslocamento para um segundo plano se deu pelo fato de o recorte
deste trabalho limitar-se aos principais representantes geracionais da Teoria Crítica
produzida por intelectuais vinculados à Escola de Frankfurt. Apesar disso, as reflexões
sobre a ideologia em Althusser não deixaram de ser realizadas através das
ponderações críticas de Axel Honneth sobre o autor e em aspectos pontuais.
As discussões apresentadas a seguir partem, portanto, de uma reconstrução
do conceito de ideologia nos diferentes sistemas teóricos dos principais expoentes da
Teoria Crítica – Max Horkheimer, Theodor Adorno, Jürgen Habermas e Axel Honneth
– autores ligados à chamada Escola de Frankfurt; e buscou não perder de vista os
principais momentos da trajetória histórica e teórica do conceito de ideologia, bem
como a relevância da crítica desenvolvida pelos frankfurtianos em relação ao debate
constituinte das Teorias da ideologia. Reconstruir as especificidades do conceito de
ideologia no interior das gerações e através das mudanças paradigmáticas da Teoria
Crítica teve como objetivo evidenciar como os diferentes autores constroem seus
instrumentos teórico-conceituais e representam os fenômenos sociais circunscritos
em torno da problemática abordada pela Teoria Crítica.
A abordagem metodológica na qual se fundamentou este trabalho
correspondeu aos princípios de uma pesquisa de natureza qualitativa e de cunho
bibliográfico (HAGUETTE, 2010), apoiando-se, também, em recursos de fontes
históricas (MARCONI; LAKATOS, 2007). A partir de uma abordagem sincrônica, a
reconstrução sobre o debate da ideologia foi realizada levando-se em consideração
obras específicas selecionadas para o corpus deste estudo, foram elas: a obra
Dialética do Esclarecimento (1947), de Adorno e Horkheimer; o ensaio Técnica e
ciência como “ideologia” (1968), de Habermas; e o artigo El reconocimiento como
ideología (2006), de Honneth. A escolha dos referidos textos está relacionada a três
aspectos relevantes: o primeiro refere-se à seleção de obras/autores representativos
das gerações que caracterizam a Teoria Crítica produzida pela Escola de Frankfurt
nos anos 40 do século XX (e não aquelas características dos anos 30); o segundo,
11
tem relação direta com a discussão que se volta especificamente para a questão ou
crítica da ideologia realizada por esses autores em seus trabalhos; e, por fim, à
escolha de textos relevantes ao conjunto da obra de seus respectivos autores.
A análise das especificidades dos usos da noção de ideologia na seleção dos
autores/obras supracitados, somada aos apontamentos críticos de diversos
estudiosos sobre o tema de ideologia ou/e sobre os membros da Teoria Crítica,
intencionou evidenciar as linhas de convergência e de divergência acerca da
discussão sobre a ideologia no interior dos diferentes sistemas teóricos que
constituem a Teoria Crítica, e por conseguinte na composição de uma discussão que
constituiria as bases de uma vertente relevante das Teorias da ideologia.
Este trabalho está dividido em cinco capítulos. No primeiro foi desenvolvida
uma discussão acerca da noção de ideologia com a finalidade de resgatar os
principais momentos de sua emergência histórica. No segundo capítulo, que também
partiu de uma abordagem introdutória mas com o propósito de refletir sobre as teorias
nas quais se sustentam o debate em torno da ideologia, resgatou-se, mediante uma
revisão bibliográfica sobre esta temática, os principais aspectos teóricos e
configurações da ideologia em Marx (e Engels), Lênin, Lukács, Mannheim, Gramsci –
pensadores (com exceção de Mannheim) de correntes marxistas –, Althusser e os
principais expoentes da Teoria Crítica da primeira até a segunda geração (intelectuais
vinculados à Escola de Frankfurt, como Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas),
tendo estes últimos sido autores que dialogaram de forma inovadora com as
contribuições de Marx. O objetivo foi delinear um quadro abrangente, a partir do qual
as especialidades das contribuições dos pensadores da Escola de Frankfurt tornaramse visíveis e inteligíveis.
No terceiro capítulo, o enfoque foi direcionado à crítica fundante da chamada
Teoria Crítica, inicialmente proposta por Max Horkheimer em ensaio intitulado Teoria
Tradicional e Teoria Crítica, de 1937. O capítulo contou com uma breve reflexão sobre
a identidade desta tradição intelectual que está diretamente associada à sua
dimensão sócio-histórica, bem como uma discussão sobre as mudanças
paradigmáticas desta teoria desmembrada em três gerações de estudiosos até o
momento, a partir da apresentação de seus principais representantes. O terceiro
capítulo também contou com a reconstrução teórica proposta neste estudo, e, para
isso, partiu das abordagens acerca do conceito de ideologia em Theodor Adorno e
Max Horkheimer com uma discussão por eles proposta como uma crítica mais ampla
12
ao que nomearam de “razão instrumental” a partir das noções de “esclarecimento e
mito” e “indústria cultural” presentes na obra Dialética do Esclarecimento (1947).
No quarto capítulo, a reconstrução teórica do conceito de ideologia teve
continuidade com as reflexões propostas por Jürgen Habermas em seu ensaio
Técnica e ciência como “ideologia” (1968). Neste ensaio, onde Habermas desmembra
criticamente o conceito de “racionalidade” em uma “racionalidade de cima” e uma
“racionalidade de baixo”, foi possível realizarmos um enfoque sobre o que o autor
denominou ser a “nova” e a “velha” ideologia.
Por conseguinte, no quinto capítulo, como reconstrução do referido conceito,
nos debruçamos em reflexões desenvolvidas por Axel Honneth, presentes em seu
artigo El Reconhecimiento como ideología (2006), onde, a partir de uma abordagem
crítica da definição de reconhecimento de Louis Althusser, o autor propõe uma
discussão sobre o conceito de “reconhecimento ideológico” e seu desmembramento
em “formas ideológicas de reconhecimento”.
13
1 Os tortuosos itinerários da ideologia: um breve traçado histórico
É como se a questão da ideologia fosse, hoje, uma
nova versão do enigma que a Esfinge propôs a Édipo.
Em vez da alternativa "ou decifras o enigma ou te
devoro", a questão da ideologia, moderna Esfinge, nos
provoca, irônica: “Decifra-me, enquanto te devoro”.
Leandro Konder
Considerado um conceito clássico e de inegável relevância na atualidade, o
termo ideologia pode designar até mesmo um capítulo das Ciências Sociais, como
escreve o sociólogo francês Raymond Boudon (1989, p. 27). Uma investigação que
tenha em vista sua complexidade teórica não ignoraria, portanto, um dos principais
consensos existentes entre os estudiosos que notadamente apontam-no como tendo
uma “natureza” polêmica e polissêmica.3 Em vista disso, a discussão proposta neste
estudo pretende desenvolver uma abordagem acerca desse complexo conceito sob o
enfoque de uma das versões mais sofisticadas a ganhar considerável destaque no
interior do debate constituinte das Teorias da ideologia, desenvolvida, segundo Slajov
Zizek (1996, p. 312), por estudiosos representantes de uma teoria social crítica,
vinculados à Escola de Frankfurt.
Formalmente chamada de Teoria Crítica, esta tradição intelectual, difundida
ao logo de gerações de pensadores, vem desenvolvendo reflexões críticas a respeito
de vários aspectos e fenômenos sociais, produção intelectual, científica e filosófica.
No tocante à questão da ideologia, os membros da Teoria Crítica, através de suas
produções intelectuais, certamente não se limitaram a uma discussão ou à
contribuição de mais uma versão do conceito. No contexto das Teorias da ideologia,
a Teoria Crítica parte de uma interessante perspectiva para a compreensão de uma
nova dimensão sobre a crítica da ideologia, principalmente com relação à sua crítica
às Teorias Tradicionais, como veremos adiante.
Não obstante à abordagem acerca das Teorias da ideologia ser realizada a
partir de aspectos pontuais relacionados a uma corrente de pensamento específica (o
que aqui se dará com os expoentes da Teoria Crítica, como já mencionado), parece
imprescindível, no tratamento do tema, ter-se que acessar um debate amplamente
Cf., por exemplo, Soares do Bem (2013), Thompson (2011), Konder (2002), Eagleton (1997), Löwy
(1991), Boudon (1989) e o verbete de Ideologia de Stoppino (1999) In: Bobbio, Matteucci e Pasquino
(1999).
3
14
desenvolvido no âmbito da filosofia e das teorias do conhecimento. Evidentemente
este não é nem o objetivo e nem está nas possibilidades deste trabalho, embora sejam
desenvolvidas, neste e no próximo capítulo, algumas considerações que pretendem
não perder de vista a complexidade do conceito de ideologia, atendendo, deste modo,
à necessidade de situar o recorte da análise proposta neste estudo no interior de um
amplo debate.
Neste sentido, para nos situarmos na dimensão do que se compreende por
ideologia, desenvolveremos inicialmente um breve resgate histórico sobre este
conceito a partir de leituras de Marilena Chaui (1987), Raymond Boudon (1989),
Leandro Konder (2002) e John Tompson (2011), para, em seguida (no segundo
capítulo), como tentativa de tornar mais claro o que seriam as Teorias da ideologia,
avançar com uma reflexão sobre o desenvolvimento teórico deste conceito em autores
representativos que vão de Marx aos principais expoentes da Escola de Frankfurt,
onde será possível a descrição de uma variedade de usos do conceito de ideologia
por um também variado número de pensadores, a partir dos estudos de Soares do
Bem (2013). Os dois primeiros capítulos deste trabalho têm por finalidade, portanto, o
desenvolvimento de uma abordagem introdutória, configurando-se, assim, num
momento necessário às discussões que, por conseguinte, se darão como
afunilamento do debate, uma vez que a nossa atenção, logo em seguida, se voltará
propriamente às abordagens sobre a ideologia desenvolvidas no interior da Teoria
Crítica, a partir da reconstrução deste conceito na seleção de obras que constituem o
corpus deste estudo.
Ao levarmos em consideração a complexidade da abordagem de qualquer
conceito, destacamos que ao tratarmos especificamente da ideologia (termo que
apresenta certa exigência na apreensão de sua “natureza” complexa) essa situação
certamente tende a se intensificar. A partir de um levantamento bibliográfico de
estudos que se dedicaram à investigação sobre “a questão da ideologia”, “a crítica da
ideologia”, “as teorias da ideologia” e/ou “os usos do conceito de ideologia” na Teoria
Social, rapidamente nos deparamos, na realidade, com uma das poucas certezas que
permite o assunto: o fato que se refere diretamente (como já enfatizado inicialmente)
ao caráter polêmico e polissêmico do conceito de ideologia. Ao elucidar sobre este
aspecto, Soares do Bem (2013, p. 70), por exemplo, assinala que tal conceito “pode
ser visto como um dos mais controversos da filosofia, da teoria social e da teoria (e
da ação) política”; para Stoppino (1999, p. 585), seja na “linguagem política prática,
15
[...] filosófica, sociológica e política – científica, não existe talvez nenhuma outra
palavra (...) comparada à ideologia pela frequência (...) [que] é empregada e,
sobretudo pela gama de significados diferentes que lhe são atribuídos”; já Löwy (1991,
p.11), por sua vez, ressalta que o conceito, ao longo dos últimos dois séculos, se
tornou objeto de “uma acumulação fantástica de contradições, de paradoxos, de
ambiguidades, arbitrariedades, de equívocos e de mal-entendidos”; para Eagleton
(1997, p. 15-16), o termo de ideologia todavia apresenta “uma série de significados
convenientes, nem todos eles compatíveis entre si”, que se configuram ora
pejorativos, ora ambiguamente pejorativos e, por vezes, nada pejorativos, algumas
dessas formulações, ainda, “envolve[ria]m questões epistemológicas – questões
relacionadas com o nosso conhecimento do mundo –, enquanto outras se cala[ria]m
a esse respeito”; e, por fim, Zizek (1996, p. 35) conclui que “estamos lidando, aqui,
com a topologia paradoxal em que a superfície (a ‘mera ideologia’) está diretamente
vinculada com – ocupa o lugar de, representa – aquilo que é ‘mais profundo que a
própria profundeza’, mais real que a própria realidade”.4
Deste modo, uma vez que o termo figura entre os poucos conceitos da história
das Ciências Sociais moderna a apresentar um itinerário histórico e teórico um tanto
pedregoso e até mesmo labiríntico, parece propício ao início de nossas reflexões
lembrarmos – ainda que com certo tom de graça – a metáfora de Leandro Konder
(2002) que está em epígrafe neste capítulo, a qual, como que uma advertência, alude
sobre a questão da ideologia ser hoje a moderna Esfinge de Delfos que ironicamente
estaria a nos provocar: “Decifra-me, enquanto te devoro” (2002, p. 12).
Não obstante, e ainda que sob aviso, ao seguirmos as trilhas vertiginosas do
conceito de ideologia, e antes mesmo que tracemos o seu itinerário histórico, é
indispensável a esta discussão fazermos algumas considerações acerca de uma
impressão que, apesar de ingênua, depreende-se do âmbito universitário – das
discussões, disciplinas e/ou cursos acadêmicos – atividades que envolvem de alguma
forma uma abordagem, por vezes sem profundidade, sobre tal conceito. Esta
impressão ganha forma quando, num primeiro momento, ao pensarmos na ideologia
Slajov Zizek (1996), neste fragmento, faz uma comparação entre a problemática da ideologia com a
teoria freudiana do sonho: “(…) Freud assinala que, no sonho, deparamos com o núcleo sólido do Real
precisamente sobre a forma do “sonho dentro do sonho” - isto é, quando a distância em relação à
realidade parece duplicada. De maneira mais ou menos análoga, deparamos com o limite intrínseco da
realidade social, com aquilo tem que ser foracluído para que emerja o campo coeso da realidade,
justamente sob a forma da problemática da ideologia, de uma “superestrutura”, de algo que parece ser
um mero epifenômeno, um reflexo especular da “verdadeira” vida social” (1996, p.34-35).
4
16
dentro da grande área das Ciências Sociais, ser inevitável não nos remetermos
imediatamente à obra A Ideologia Alemã (1845/46), de Karl Marx e Friedrich Engels.
Embora esta relação, ao que parece, não seja absolutamente infundada, bem
como não se resuma tão logo a uma precipitada impressão, limitar a discussão sobre
a questão e/ou crítica da ideologia a esse – ainda que fantástico – movimento
restringiria a compreensão sobre a ideologia à publicação de A Ideologia Alemã, o que
evidentemente reduziria as possibilidades e potencialidades atribuídas ao conceito
que estão diretamente relacionadas à sua abordagem em outros sistemas teóricos.
Ainda no que se refere à ligação imediata apontada por nós entre o conceito
de ideologia com a obra de Marx e Engels, à primeira vista talvez esta relação não se
fundamentaria se apenas levássemos em consideração a contundente crítica às
tendências ideológicas burguesas que os autores fizeram, assim como à relevância
que a obra teve ao assinalar o nascimento do materialismo histórico com uma “teoria
que articula a dialética e o materialismo sob uma perspectiva histórica, negando tanto
o idealismo hegeliano quando o materialismo dos neo-hegelianos” (QUINTANEIRO;
BARBOSA; OLIVEIRA, 1995, p. 29). Mas, principalmente, tal relação ganha contornos
mais visíveis se levarmos em consideração dois fatores: o primeiro de ter sido,
segundo Marilena Chaui (1987, p. 32), a obra A Ideologia Alemã o espaço privilegiado
onde Marx e Engels realizaram a caracterização mais pungente da ideologia; e,
segundo, o modo como esta caracterização, somada à recepção do conjunto de suas
obras (principalmente a de Marx), repercutiu produtivamente nas produções dos
autores aqui abordados.
Afirmar isso, no entanto, implica o esclarecimento do que se compreende por
ideologia em Marx e Engels. Michael Löwy (1991) pontua que
Em A ideologia Alemã, o conceito de ideologia aparece como equivalente à
ilusão, falsa consciência, concepção idealista na qual a realidade é invertida
e as idéias aparecem como motor da vida real. Mais tarde Marx amplia o
conceito e fala das formas ideológicas através das quais os indivíduos tomam
consciência da vida real, ou melhor, a sociedade toma consciência da vida
real. Ele as enumera como sendo a religião, a filosofia, a moral, o direito, as
doutrinas políticas, etc (1991, p. 12).
Apesar das obras de Marx não oferecerem uma visão única e homogênea
sobre a ideologia, como é possível observarmos com as considerações de Löwy
(1991) na citação acima, ao levarmos em consideração que Marx tenha utilizado o
conceito em muitos de seus textos, os mais importantes, inclusive, relacionando-o a
etapas diversas de sua produção, vale ressaltar que a questão da ideologia foi
17
especialmente abordada em A Ideologia Alemã (THOMPSON, 2011, p. 48-49;
SOARES DO BEM, 2013, p. 71). No entanto, os seus escritos não deixam de ocupar
uma posição de centralidade na história deste conceito, os quais tiveram fundamental
importância no desenvolvimento da noção ideologia posteriormente, sobretudo no
interior da tradição marxista (THOMPSON, 2011, p. 49; JAEGGI, 2008, p. 137;
BOUDON, 1989, p. 27). Neste sentido, para Thompson (2011), a “ambiguidade do
conceito de ideologia no trabalho de Marx” é parcialmente responsável “pelos debates
contínuos a respeito do legado de seus escritos” (2011, p. 49), ao passo que, para
Gorender (2007, p. xxiii), a relevância da obra A Ideologia Alemã, no que concerne
especificamente à ideologia, configura-se como embrião de uma discussão que se
faria fecunda no campo do pensamento social com o passar do tempo.
Ao evidenciarmos, portanto, neste primeiro momento de nossa discussão
alguns fatores que justificariam as primeiras impressões de uma abordagem sobre a
ideologia, não poderíamos perder de vista que, apesar de o conceito de ideologia ter
tomado dimensões que no decorrer do tempo foram trilhando caminhos diversificados,
a contribuição de Marx no desenrolar desta história constitui um aspecto altamente
relevante a agregar os inúmeros rumos que se somam à trajetória do conceito. Em
vista disso, como uma tentativa de desvendar um pouco a sua complexidade,
seguiremos nos parágrafos seguintes com um breve resgate de seu percurso
histórico.
Para Leandro Konder (2002), a tematização do conceito de ideologia “entendido como o registro de pressões deformadoras atuando sobre o processo de
elaboração do conhecimento” - não é recente (2002, p. 15). Fez-se presente, por
exemplo, desde questionamentos como “o que é o conhecimento?” promovidos pelos
gregos antigos: Platão, com o mito da caverna, “já advertia seus contemporâneos de
que podiam estar enxergando sombras e pensar que estavam vendo seres reais”
(Idem, p. 15). Sob este enfoque, em seu livro A questão da Ideologia, Konder (2002)
inicia uma pertinente reflexão intitulada “A questão da ideologia antes de Marx”, onde,
entre outros aspectos, ao abordar a história do surgimento deste termo, desenvolve
uma interessante discussão acerca do que acredita já ser uma preocupação para
alguns pensadores da história da filosofia antes mesmo do surgimento do que lhe
daria nome, ou seja, a preocupação sobre a questão do nexo entre realidade e
representação.
18
O conhecimento, para este autor, passou por inumeráveis momentos em que
se viu obrigado a voltar-se sobre si mesmo e reconhecer suas contradições ou
paradoxos. Em suas palavras: “um dos campos temáticos mais importantes da
filosofia, a teoria do conhecimento, sempre se ocupou de um modo ou de outro, de
algumas das questões que integram a problemática daquilo que viria a ser designado
como ideologia” (KONDER, 2002, p. 17). Na história da filosofia, por exemplo, alguns
pensadores renascentistas defendiam, como Nicolau de Cusa (1401-1464) a partir do
que chamara de “douta ignorância”, uma nova maneira de pensar o conhecimento;
Francis Bacon (1561-1626), com uma crítica ao conhecimento considerado
extremamente abstrato na época, via como necessária à sua produção uma
reconexão com o mundo empírico; o pensador francês Montaigne (1533-1592), por
sua vez, “denunciava a estreiteza ideológica” da cultura europeia; dois séculos mais
tarde o também francês Diderot (1713-1784), influenciado por Montaigne,
aprofundaria suas análises sobre a presunção do eurocentrismo (Idem, p. 18-20).
A problemática denunciada por esses pensadores seria nomeada até meados
do século XIX como ideologia, mas isso se daria por um processo literalmente
intrigante. Ao delinear os contornos históricos da noção de ideologia, John Thompson
(2011), nos primeiros capítulos de sua obra Ideologia e Cultura Moderna, fez um
apanhado sobre o que denominou ser um tema de itinerário intelectual complexo.
Logo nas primeiras linhas, com um leve tom sarcástico, pontua que “o conceito de
ideologia teve um parto difícil e, como se isso não bastasse, sua história de vida
subsequente teve poucas alegrias” (2011, p. 43). Thompson (2011) argumenta ainda
que mesmo a ideologia pertencendo a um lugar de centralidade no desenvolvimento
do pensamento social e político, no decorrer desses pouco mais de dois séculos que
precederam sua emergência como conceito, esse lugar nem sempre foi “glorioso”.
Isso porque, desde sua criação com a intenção de instituir uma ciência das ideias, o
conceito se embrenhou rapidamente num processo que o autor chamou de “batalha
política travada no terreno da linguagem”, o que custou a transfiguração da ideologia
de uma suposta ciência para duvidosas e vazias ideias sem ligação concreta com o
real (2011, p. 43).
A partir das considerações expostas acima, é importante destacar que o termo
ideologia não surgiu de Marx, e nem foi Marx quem de maneira mais sistemática o
trabalhou como conceito (SOARES DO BEM, 2013, p. 70). Seu primeiro uso
aconteceu pouco mais de meio século antes da produção de A Ideologia Alemã. A
19
palavra ideologia foi usada pela primeira vez pelo filósofo francês Destutt De Tracy em
1776, ou, dito à maneira do sociólogo Michael Löwy (1991), o termo foi “literalmente
inventado (no pleno sentido da palavra: inventar, tirar da cabeça, do nada)” (1991, p.
11), a princípio como um projeto que teria como objetivo descrever uma nova ciência
interessada em analisar a gênese, a combinação e as consequências das ideias e
sensações (THOMPSON, 2011, p. 44), e que foi posteriormente divulgado no livro
chamado Eléments d’Idéologie, publicado em 1801 por De Tracy (CHAUI, 1987, p. 22;
LÖWY, 1991, p. 11; KONDER, 2002, p. 22).
Com o propósito de elaborar uma ciência da gênese das ideias, De Tracy não
estava sozinho. Em parceria com os que em pouco tempo ficariam conhecidos por
ideólogos – o médico Cabanis, De Gérando e Volneym –, De Tracy submeteria as
ideias e as sensações à criteriosas análises, com o objetivo de decompô-las “até
alcançar os elementos sensoriais que as constituem em sua base” (KONDER, 2002,
p. 22). Os ideólogos acreditavam na impossibilidade de conhecermos as coisas em si
e por si mesmas, o que para eles poderia ser conhecido eram apenas as ideias
formadas pelas sensações sentidas por nós, organismos vivos, em relação com o
meio ambiente. Embevecidos com os clássicos das luzes, eles estavam atendendo,
de certa forma, uma demanda do insurgente nascimento da ciência (Idem, p. 22). A
então ciência das ideias, portanto, era um empreendimento que não tinha nada de
aleatório. Não sendo à toa, neste sentido, a atribuição de uma “fé iluminista” aos
ideólogos, com a qual acreditavam na possibilidade de uma “reestruturação da origem
social e política de acordo com as necessidades e aspirações dos seres humanos”
(THOMPSON, 2011, p. 45). Marilena Chaui (1987) explicita bem essa situação ao
pontuar que
Os ideólogos franceses eram antiteológicos, antimetafísicos e
antimonárquicos. Pertenciam ao partido liberal e esperavam que o progresso
das ciências experimentais, baseadas exclusivamente na observação, na
análise e síntese dos dados observados, pudesse levar a uma nova
pedagogia e a uma nova moral [...] contra a educação religiosa e metafísica,
que permite assegurar o poder político de um monarca […] (1987, p. 22-23).
Ligados intimamente à política do republicanismo, os ideólogos e suas
doutrinas dependiam do destino da própria Revolução (THOMPSON, 2011, p. 46).
Estes, no entanto, foram surpreendidos em 1799, ano em que Napoleão Bonaparte
retornou do Egito e aplicou um golpe de Estado, tornando-se, portanto, no Primeiro
Cônsul a manter uma posição de autoridade absoluta que se estenderia por 10 anos.
20
Bonaparte, certo de que sua ligação com o republicanismo constituía uma
ameaça às suas ambições autocráticas, investiu como pôde contra os ideólogos – os
mesmos que antes de inevitavelmente se decepcionarem naquele atual quadro
político com o representante e restaurador do Antigo Regime, foram seus partidários
e o apoiaram no “golpe de 18 Brumário, pois o julgavam um liberal continuador dos
ideais da Revolução Francesa” (THOMPSON, 2011, p. 46; CHAUI, 1987, p. 25). Em
oposição ao novo regime, De Tracy e seus companheiros foram excluídos enquanto
conselheiros políticos e tiveram suas Academias fechadas (CHAUI, 1987, p. 24). No
entanto, as investidas de Napoleão contra os ideólogos não se limitaram ao
afastamento destes últimos do cenário político, ampliaram-se, todavia, em represálias
no campo da linguagem. Foi com essa intenção que Napoleão, então, em um de seus
discursos,5 atribuiu todas as desgraças da França a uma “tenebrosa metafísica”
chamada de ideologia (Idem, p. 24). Com declarações que intencionalmente
conferiam sentidos pejorativos à noção de ideologia, Napoleão invertia, assim, a
imagem que De Tracy e seus companheiros tinham de si mesmos (Ibidem, p. 24-25).
Os ideólogos “que queriam fazer uma análise científica materialista da ideologia”,
passaram, paradoxalmente, de “materialistas”, “realistas” e “antimetafísicos” para
“tenebrosos metafísicos” que ignoravam a realidade política à sua volta (CHAUI, 1987,
p. 24; LÖWY, 1991, p. 12). Deste modo, o sentido atribuído por Napoleão à noção de
ideologia ganhou adesão na época e entrou para o linguajar corrente (Idem, p. 24;
idem, p. 12). Foi com Napoleão, portanto, “que o termo ideologia – que havia surgido
com sentido exaltadamente positivo – passou a ter acepção asperamente negativa,
(...) [e que] prevaleceu nas décadas seguintes” (KONDER, 2002, p. 23).
Longe de ser esse o fim do que teve um começo difícil, o termo ideologia ainda
enveredará por um longo caminho. Essa situação nos faz lembrar o que declara Denis
Cuche (2002)6 acerca da relevância que as palavras podem ter. Para este autor, o
“peso” que atribuímos às palavras é grandemente influenciado por um processo
dinâmico que se efetiva através da relação destas com a história que as fez e a partir
da história para a qual elas contribuem; sendo, portanto, conveniente sua afirmação
Napoleão, em discurso feito em 1812 ao Conselho de Estado, declarou: “Todas as desgraças que
afligem nossa França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com
sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar
as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história” (CHAUI, 1987, p. 25).
6
Denys Cuche, em seu livro A noção de Cultura nas Ciências Sociais (2002), desenvolve uma
interessante analise sobre o conceito de cultura a partir de seu processo de gênese social, de origem
e evolução nas Ciências Sociais.
5
21
de que “as palavras têm uma história e, de certa maneira, também, as palavras fazem
a história” (2002, p. 17). Com a palavra ideologia – noção que desponta como umas
das mais afamadas da Teoria Social – percebe-se não ser diferente. Não lhe sendo o
bastante, sua história não se resume aos “episódios” acima mencionados, mas foram
nessas condições que, segundo Thompson (2011, p. 43), o conceito fatalmente “foi
puxado numa direção e empurrado para outra, e durante todo esse tempo ele se
tornou um termo que desempenhou um papel nas batalhas políticas da vida cotidiana”.
Estas últimas ponderações estão em consonância com as colocações de
Michael Löwy (1991) que, em um de seus trabalhos,7 ao tratar sobre o processo
histórico da ideologia, sintetizou que o termo “começa com um sentido atribuído por
Destutt, que depois é modificado por Napoleão e, em seguida, é retomado por Marx
que, por sua vez, lhe dá um outro sentido” (1991, p. 12). Löwy (1991) não parou por
aí, também destacou que “a palavra [foi] mudando de sentido, não só ao passar de
uma corrente intelectual para outra, mas também no seio de uma mesma corrente de
ideias: o marxismo” (1991, p. 12-13). São com estas considerações que daremos
início ao próximo capítulo com o desenvolvimento de uma síntese sobre os principais
aspectos relacionados ao percurso teórico do conceito de ideologia, principalmente
aos que se referem diretamente ou como desmembramento da tradição marxista.
Em conferência pronunciada na PUC/SP, em junho de 1985, e que posteriormente foi editada em
formato de livro.
7
22
2 As Teorias da ideologia e a Teoria Crítica: interfaces possíveis?
Com o primeiro capítulo foi possível verificarmos como alguns dos principais
aspectos inscritos no que representa a ideologia foram determinantes para a sua
história, bem como foi possível a observância de situações que gravitaram em torno
de sua emergência como conceito nas Ciências Sociais. Neste capítulo ainda
daremos continuidade ao levantamento dos aspectos mais relevantes acerca da
ideologia, mas, antes, partiremos de uma breve abordagem sobre as configurações
deste conceito em vários estudiosos de correntes teóricas que vão desde a marxista
aos que operaram dentro de uma tradição não exclusivamente marxista ou mesmo
em oposição a esta tradição às que dialogaram de forma inovadora com as
contribuições de Marx (estão inclusos neste último grupo os teóricos da Escola de
Frankfurt, os quais terão especial enfoque nos capítulos seguintes).
Como um esforço de compreensão do que seriam as Teorias da ideologia,
será apresentada, a seguir, uma discussão do sociólogo Arim Soares do Bem (2013)
proposta no primeiro capítulo de seu livro Paradoxos da Diferença: etnicidade,
inimificação e reconhecimento (Alemanha-Brasil),8 no qual estão contidas algumas
considerações críticas sobre os diferentes usos do conceito de ideologia entre uma
seleção de teóricos que vão de Marx à Habermas, enunciados pelo autor como os
mais representativos deste debate na Teoria Social. Por questões relacionadas às
limitações deste capítulo, seja no atendimento de seu objetivo seja por seu caráter
introdutório, abordaremos resumidamente os aspectos apontados por Soares do Bem
(2013). Este capítulo ainda terá como contribuição as leituras de Slavoj Zizek (1996),
Terry Eagleton (1997), e de outros autores oportunamente citados/as que se
debruçaram também sobre a questão e/ou a crítica da ideologia.
No primeiro capítulo de seu livro, “Ideologia, Formas Culturais e Reprodução
Social”, Soares do Bem (2013), diante da complexa articulação que observa entre
ideologia e cultura, no desenvolvimento de suas reflexões, vê como indispensável
pensar a ideologia em sua funcionalidade para a reprodução social, uma vez que “nas
Ideologia, Formas Culturais e Reprodução Social, primeiro capítulo do livro Paradoxos da Diferença:
etnicidade, inimificação e reconhecimento (Alemanha-Brasil), de Arim Soares do Bem, é resultado de
sua tese de doutorado concluída em 1997 na Universidade Livre de Berlim (RFA), e problematiza o
processo de constituição da identidade social de jovens alemães ocidentais, orientais e de origem
estrangeira nascidos em Berlim (de ambos os sexos), entre os anos de 1988 e 1994, período que
coincidiu com o antes, durante e pós unificação alemã.
8
23
práticas culturais encontram-se, pois, em estado latente, elementos ideológicos”
(2013, p. 99). Para tanto, o conceito de ideologia empregado em seu estudo é
compreendido “não como um sistema de visão de mundo, atitudes e valores, mas
como algo que se manifesta concretamente em aparelhos e práticas que têm por
finalidade regular e organizar interesses antagônicos” (HAUG, 1993 apud SOARES
DO BEM, 2013, p. 96).9 Com o objetivo de abordar a discussão sobre a ideologia sem
perder de vista a sua complexidade, em seção intitulada “Reconstrução e crítica das
principais abordagens sobre a ideologia”, Soares do Bem (2013) se propõe ao
desenvolvimento de uma reconstrução dos principais aspectos relacionados à
ideologia em autores como Marx e Engels, Lênin, Lukács, Mannheim, Gramsci,
Althusser, e os principais expoentes da Escola de Frankfurt da primeira à segunda
geração, são eles: Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas.
Em Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), como bem pontua Soares do
Bem (2013, p. 70), e conforme foi problematizado no capítulo anterior, o conceito foi
amplamente utilizado, embora, a depender do contexto de suas obras, sofra variações
e não tenha sido sistematicamente desenvolvido. A ideologia aparece nos trabalhos
de Marx como um “conceito crítico que implica ilusão, ou se refere à consciência
deformadora da realidade que se dá através da ideologia dominante: as ideias das
classes dominantes são as ideologias dominantes na sociedade” (LÖWY, 1991, p. 12).
Em A Ideologia Alemã, por exemplo, “apresentam-se como ideologia as teorias que
fazem abstração da atividade humana e representa a história humana, (...) a partir de
uma visão invertida (verdrehte Auffassung) do real” (SOARES DO BEM, 2013, p. 71).
Considerada, pelos autores, como uma “visão invertida do real”, a ideologia, neste
sentido, falsearia a relação de exploração de uma classe social sobre a outra (Idem,
p. 71).
Em conformidade com os aspectos apontados na reconstrução histórica do
conceito, bem como as considerações de Soares do Bem (2013), Jacob Gorender
(2007, p. xxiii) destaca que “o conceito de ideologia ganhou significados diferenciados
na história do marxismo”. Podemos ver isso na sequência com Vladimir Ilitch Lênin
Soares do Bem (2013) esclarece que alguns aspectos centrais da reconstrução proposta em suas
análises tiveram como embasamento as reflexões citadas pelo “Projekt Ideologie-Theorie” (1986),
abreviado ao longo de seu texto por PIT: “Parece-nos (…) bastante salutar o procedimento adotado
pelos “Projekt Ideologie-Theorie” (1986) no sentido de investigar os usos do conceito em relação aos
problemas de fundo (…) expandindo a investigação também para aqueles textos que, embora não
façam referência explicita ao conceito, apresentam elementos fundamentais para iluminar o debate”
(2013, p. 73-74).
9
24
(1870-1924), um dos primeiros pensadores a representar a vertente marxista. Neste
autor, a ideologia perde parte do teor original que ganhara em Marx e passa a significar
qualquer concepção da realidade vinculada aos interesses de uma classe social. A
ideologia está menos relacionada a uma abordagem estritamente teórica e mais
direcionada a interesses de ordem prática. Soares do Bem (2013) argumenta que,
neste autor, o conceito aparece sistematicamente discutido na obra Estado e
Revolução (de 1917), apresentando-se como “ideologia da classe trabalhadora” e com
sentido que desloca “a dicotomia do antagonismo matéria-consciência para a
dicotomia ciência-movimento social” (2013, p. 74). A ideologia, para Lênin, não seria
em todos os casos uma “consciência falsa da realidade”; para ele existiria “uma
ideologia burguesa e uma ideologia proletária” (LÖWY, 1991, p. 12). No caso da classe
operária, por exemplo, a ideologia socialista é uma consciência verdadeira da
sociedade (Idem, p. 12). Lênin, deste modo, caracterizou um tipo específico de
ideologia – a “ideologia socialista” –, esta, por sua vez, configurar-se-ia como sinônimo
da teoria científica revolucionária, ou seja, o marxismo (GORENDER, 2007, p. xxiii).
O próximo estudioso a integrar a corrente marxista com uma crítica à ideologia
é Georg Lukács (1885-1971). O conceito de ideologia, neste autor, aparece
principalmente na obra “História e Consciência de Classe” (publicada em 1923). É no
interior de reflexões sobre os elementos que impossibilitaram uma revolução na
Europa Ocidental, e em reação ao economicismo da Segunda Internacional, que
A causa para a dificuldade da realização revolucionária naquele contexto é
indicada por Lukács como decorrendo da ancoragem de estruturas
ideológico-burguesas na consciência da classe trabalhadora, provando a
naturalização das relações sociais e o bloqueio da percepção do caráter
histórico e, portanto, transitório do capitalismo (SOARES DO BEM, 2013 p.
75).
Em Lukács seria possível distinguir diferentes usos do conceito de ideologia.
Em alguns momentos é visto como “falsa consciência”, em outros como “luta
ideológica” que expande seu campo de atuação para a ciência e a cultura e, por vezes,
a ideologia também ganha sentido neutro ou até mesmo pejorativo (Idem, p. 75).
Outro pensador a figurar na linha de vertente marxista é Antonio Gramsci
(1891-1937), estudioso que sofreu forte censura e que, como estratégia que burlasse
os controles das autoridades carcerárias, se utilizou de uma “linguagem disfarçada ou
generalizadora”, na qual substituiria, por exemplo, o conceito de “classe” pelo de
“grupo” ou o conceito de “marxismo” pelo de “filosofia da práxis” (SOARES DO BEM,
25
2013, p. 80). Em os Cadernos do cárcere (escritos entre os anos de 1926 e 1937,
período em que foi prisioneiro na Itália), Gramsci, em determinados contextos, utiliza
o conceito de ideologia em oposição à ciência, em outros momentos afirma que a
ciência, como “uma superestrutura”, é “uma ideologia”; já em outros contextos,
compreende a ideologia como a “necessária superestrutura” que serve como base
(Idem, p. 80). Sobre esta última definição, Soares do Bem (2013) pontua que
Gramsci analisa a relação entre ciência, religião e consciência cotidiana, onde
se atribui à ideologia um alto significado (…) para a constituição da visão de
mundo (…), manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades
econômicas e em todas as expressões individuais e coletivas (2013, p. 80,
grifos do autor).
Apesar de compartilhar das mesmas preocupações de Lukács no que se
refere aos elementos responsáveis pelo fracasso do movimento operário e que
impossibilitaram uma revolução na Europa Ocidental, Gramsci tem como foco
principal de sua análise a “complexa estrutura da sociedade civil e a sua incapacidade
de mobilizar-se de modo resistente contra elementos imediatamente econômicos”
(Idem, p. 80-81). Neste contexto, a ideologia não é vista por Gramsci como uma “falsa
consciência” que seria proveniente das relações econômicas, ela estaria presente em
“formas históricas cristalizadas” que permeiam as relações sociais (Ibidem, p. 81).
Soares do Bem (2013) ainda enfatiza que, através da compreensão de uma
práxis da consciência cotidiana, “Gramsci antevê a possibilidade de construção de
caminhos que permitam a construção de uma consciência totalizadora entre os
dominados” (2013, p. 81). A partir de tal práxis, fundamentada sob um núcleo de bom
senso da consciência cotidiana, deveriam por conseguinte “emergir as condições
essenciais para a construção de uma ‘nova cultura’, capaz de fomentar o
desenvolvimento de competências cognitivas e práticas aptas a consolidarem o
processo da autossocialização de indivíduos e grupos sociais” (Idem, p. 81).
Compondo um grupo que desenvolveu abordagens críticas da ideologia em
diálogo com Marx – ou em contraposição a ele – e com afins, para Soares do Bem
(2013) está Althusser e os principais expoentes da Escola de Frankfurt: Horkheimer,
Adorno, Marcuse e Habermas. Mas, antes mesmo de entrarmos na discussão sobre
estes autores, será necessário a exposição de alguns apontamentos sobre Mannheim.
Apesar de não figurar entre os representantes de corrente marxista, Karl
Mannheim (1893-1947), com sua obra Ideologia e Utopia (de 1929), dá especial
atenção à discussão sobre a ideologia num “contexto de diferenciação entre as
26
ciências naturais e as ciências humanas, que marcou consideráveis correntes do
pensamento no século XIX e no início do século XX” (Ibidem, p. 76-77). Mannheim
defende que a ideologia está presente em muitas esferas sociais, como na política e
na ciência, por exemplo. Como forma de lidar com esta difusa situação, Soares do
Bem (2013) salienta que
Mannheim propôs uma síntese capaz de superar e transcender a realidade
dos pontos de vista, atribuindo aos intelectuais modernos, considerados
portadores de uma inteligência livremente flutuante (Freischrwebende
Intelligenz) ou “socialmente desvinculada”, o papel de realização da “síntese
de perspectiva” que permitiria tanto o acesso à verdade como o seu controle,
no processo de produção do conhecimento (2013, p. 78, grifos do autor).
No momento em que Mannheim tem como enfoque de análise a “relação entre
conhecimento e realidade histórico-social”, a ideologia, para ele, é distinguida da
utopia, preservando, para a primeira, um sentido negativo; podendo, portanto, ser
compreendida dessa forma como sendo um “instrumento de estabilização e
reprodução da ordem social” (Idem, p. 77, grifos nossos).
Já Louis Althusser (1918-1990), em sua obra Aparelhos Ideológicos de
Estado (de 1969), propõe uma teoria sobre a ideologia de impressionante
originalidade no dizer de Terry Eagleton (1997, p. 124), não rompendo, mas
acrescentando à teoria marxista do Estado um campo que foi sistematizado a partir
de influências da teoria da psicanálise lacaniana e de características historicistas da
obra de Gramsci. Althusser parte de uma questão central e norteadora, a saber: “como
é assegurada a reprodução das relações de produção?”. No intuito de respondê-la,
desenvolve duas teses: a primeira defende que “a ideologia ‘representa’ a relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”, e a segunda tese
postula que “a ideologia tem uma existência material” (ALTHUSSER, 1985, p. 88).
Para melhor explanar a primeira tese, o autor desenvolve o que chama de
“ideologia geral” como uma teoria das ideologias, a que não contém história, fazendo
referência ao inconsciente em Freud – que não tem história porque é eterno. A
“ideologia geral”, para Althusser, também é eterna, não tendo uma história própria,
diferente das ideologias específicas ou particulares. Althusser realiza uma discussão
sobre a ideologia através da articulação de dois planos que se diferenciam e se
complementam: o primeiro propõe uma abordagem antieconomicista e antihistoricista, partindo de uma teoria geral da ideologia para poder compreender a
autonomia das diferentes instâncias e práticas sociais na configuração da relação
27
entre a base e a superestrutura; no segundo plano, por sua vez, Althusser apresenta
sua teoria dos aparelhos ideológicos do Estado (SOARES DO BEM, 2013, p. 82-83).
Partindo da ideia de que “L'homme est por nature un animal ideológique”,
Althusser abandona a representação marxista de ideologia como necessidade
transitória, afirmando sua condição antropológica e, portanto, transistórica (Idem, p.
85). Com efeito, para este autor toda formação social funciona por meio da ideologia.
Esse ponto fica evidenciado quando pontua que “as organizações revolucionárias
também ‘funcionam’ por meio da ideologia, mas quando se trata de organizações
revolucionárias marxista-leninistas, estas funcionam por meio da ideologia proletária
(antes de tudo política, mas também moral)” (ALTHUSSER, 1995, p. 203).
Na segunda tese de seu livro, Althusser (1985) salienta que “a ideologia tem
uma existência material” (1985, p. 88). Essa materialidade denominada Aparelhos
Ideológicos do Estado (AIE) é responsável por “moldar” o comportamento prático das
ações dos indivíduos que surgiriam através de “práticas regulamentadoras” – rituais
que surgem no interior de determinado AIE (1995, p. 203). Althusser supera, assim, a
concepção de ideologia enquanto expressão de um “sistema de ideias”, defendendo
sua materialização em instituições que tendem a moldar a consciência dos indivíduos
através do que denomina “submissão voluntária” (SOARES DO BEM, 2013, p. 83-84).
Deste modo, diferentemente dos aparelhos repressivos de Estado – o exército, a
polícia, os tribunais, as prisões, etc –, que agiriam pelo uso da violência, os AIEs (a
variedade de instituições distintas e especializadas) funcionariam através da ideologia
(ALTHUSSER, 1985, p. 69).
As ideologias particulares – a ideologia política, moral, religiosa, etc – atuam
em geral como concepção do mundo. Para explicar como ocorre o recrutamento do
indivíduo em uma relação imaginária com suas condições reais de existência,
Althusser (1995) propõe o conceito de “interpelação”, através do qual a “ideologia
interpela os indivíduos como sujeitos” (1995, p. 214). Soares do Bem (2013) nos
chama atenção para o fato de que
a materialidade da ideologia não se esgota na existência e na funcionalidade
desses aparelhos, pois estes não são vistos como sendo os produtos direto
e imediatos da consciência. Eles são, pelo contrário, propulsores de um
conjunto de disposições que modelam os indivíduos de fora para dentro e
estas disposições são integradas voluntariamente a partir da prática de rituais
de subjeção. Ao transformarem o impulso exterior em regra de
comportamento, os indivíduos submetem-se à ordem, reproduzindo-a com as
próprias mãos (selbsttätig) (2013, p. 83-84, grifos do autor).
28
Todos os AIEs se direcionam para um mesmo fim: a reprodução das relações
de produção. Neste sentido, Althusser (1985) afirma que dentre a variedade de AIEs,
o escolar assume posição dominante nas formações capitalistas por melhor atender
a lógica das relações de exploração quando alcançam os indivíduos desde quando
crianças – na educação formal, fora do seio familiar – às formações e especializações
diversas que alcançam as pessoas adultas. Sob esta estrutura, o funcionamento da
ideologia, portanto, asseguraria a reprodução das relações de produção (1985, p. 88).
Com relação aos membros da Escola de Frankfurt, Soares do Bem (2013)
também desenvolveu uma reconstrução crítica sobre as abordagens acerca do
conceito de ideologia em Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jürgen
Habermas. As intenções destes pensadores ao integrarem uma tradição intelectual
chamada de Teoria Crítica, principalmente no que se refere à sua primeira fase,
resultaram de um processo de crítica da sociedade e de seu contexto histórico (Cf.
SOARES DO BEM, 2013, p. 87; KONDER, 2002, p. 78). Suas intenções também
estavam diretamente relacionadas à necessidade do desenvolvimento de novos
pressupostos teóricos e metodológicos que distinguissem esta nova proposta teórica
de abordagens materialistas então vigentes, de modo a reconhecer e integrar em seu
domínio o conhecimento pragmático das ciências especializadas, superando o “(…)
purismo teórico do materialismo histórico” (HONNETH, 1999, p. 505), tal como
configurado em suas origens, no século XIX – o que a teoria crítica marxista, por
exemplo, já não podia abarcar principalmente em relação a aspectos culturais e
psicanalíticos. Deste modo, emerge nesta tradição intelectual um marxismo
interdisciplinar que se realiza através do diálogo entre uma variedade de áreas do
conhecimento num processo de revisão sobre vários temas (Idem, p. 505), inclusive
a discussão sobre a ideologia, preservando o teor crítico ao mesmo tempo para a
análise da sociedade.
Nos próximos capítulos nos debruçaremos mais detidamente sobre as
abordagens desses pensadores, a partir de uma reconstrução do conceito de
ideologia em suas obras. De forma substancial Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max
Horkheimer (1895-1973), com a obra Dialética do Esclarecimento (1947),
desenvolveram, através de uma abordagem incisivamente crítica da sociedade de sua
época, uma reflexão sobre o fracasso do Ideal de razão proveniente do Iluminismo,
que garantiu as revoluções instauradoras da ascensão da burguesia no século XVIII
(SOARES DO BEM, 2013 p. 91). Nesta obra, a discussão sobre a “indústria cultural”
29
é fundamental para o desenvolvimento de reflexões sobre a ideologia: a partir desta
noção seria possível evidenciar a “regressão do esclarecimento à ideologia”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 168), uma vez que ela se funda na verticalidade,
na oposição entre sujeito e objeto e em concepções estreitas de subjetividade.
Herbert Marcuse (1898-1979), por sua vez,
como um importante
representante da primeira geração da Teoria Crítica, em sua obra A Ideologia da
Sociedade Industrial (1964), desenvolveu uma interessante reflexão que contribuiu
com debate da ideologia. A partir do que denominou de “sociedade unidimensional”, a
ideologia, em Marcuse, é apresentada como um sistema totalitário que vincula as
necessidades humanas a uma lógica repressiva de submissão ao mercado, que,
consequentemente, ao monopolizar as expectativas de realização das pessoas,
provocaria um desenfreado processo de consumo, identificado por ele como uma
forma de dessublimação repressiva (SOARES DO BEM, 2013 p. 92-93).
Já Habermas (quarto teórico da Escola de Frankfurt aqui abordado) é um
importante representantes da segunda geração da Teoria Crítica. Com seu ensaio
Técnica e ciência como “Ideologia” (1968), e em diálogo com os autores que o
precedem (em especial Marcuse), Habermas destaca a existência de duas condições
para a ideologia: a velha e a nova ideologia. A primeira seria conquistada pela
repressão coletiva das massas, e a segunda, por sua vez, agiria ao despolitizar as
pessoas,
tornando
desnecessárias
certas
normatizações
interativas,
e,
consequentemente, certas organizações da vida em comum (HABERMAS, 2014, p.
118).
Em consonância com os apontamentos desenvolvidos até o momento, para
Gorender (2007, p. xxiii), a ideologia “trata-se de [um] conceito cujo significado
continua em disputa e, por consequência, toda sua aplicação discursiva e
historiográfica”. Ainda que a partir de breves considerações, demonstramos com as
reflexões desenvolvidas neste capítulo e no anterior o quanto a questão e/ou crítica
da ideologia vem sendo uma ocupação de estudiosos de épocas, áreas de
conhecimento e orientações teórico-metodológicas diversas. Muitos também são os
sentidos que tais abordagens sobre a ideologia imprimem ao conceito. Terry Eagleton
(1997, p. 15), ao metaforicamente afirmar que “a palavra ‘ideologia’ é, por assim dizer,
um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por
divergentes histórias (...)”, nos oferece uma dramática imagem que traduz essa
emaranhada tela de significados. Como “fios conceituais”, Eagleton (1997), em sua
30
obra Ideologia: uma introdução, sistematiza uma lista10 imensa de sentidos que são
atribuídos ao conceito de ideologia, que podem ir desde uma concepção positiva,
passando por um sentido neutro, para, por fim, chegar a um sentido negativo do termo.
Algumas das definições, segundo o autor, são complementares, outras, no entanto,
opostas ou até mesmo conflitantes entre si. Slajov Zizek (1996) nos traz uma
interessante definição como chave de leitura para tal característica, ao salientar que
“Ideologia” pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa
que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um
conjunto de crenças voltados para a ação; desde o meio essencial em que os
indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as ideias
falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir
exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer onde claramente
se esperaria que existisse (1996, p. 09).
Como saída desse empasse, Eagleton (1997) nos oferece o argumento de
que tentar reduzir a variedade de significados característica do conceito de ideologia
em uma única definição que abrange os demais, em uma “Grande Teoria Global”, por
exemplo, seria inútil se fosse possível. Nas palavras do autor:
Qualquer palavra que abranja tudo perde o seu valor e degenera em um som
vazio. Para que um termo tenha significado, é preciso que se possa especificar
o que, em determinadas circunstâncias, seria considerado o outro dele – o
que não significa, necessariamente, especificar algo que seja sempre e em
qualquer parte o outro dele (EAGLETON, 1997, p. 20, grifos do autor).
A determinação do que há de mais relevante e “valioso” em cada um de seus
significados, selecionando o que deveria ser “descartado” do que seria aproveitado,
portanto, seria mais importante que a reunião de todas as definições atribuídas ao
conceito de ideologia (1997, p. 15). Mas sabemos que isso não se deve a uma mera
deliberação; porém, temos que resistir à tentação de seguirmos por um percurso obvio
ao tentarmos avaliar a “adequação” ou a “veracidade” dos diferentes sentidos
atribuídos a ideologia, como bem nos orienta Zizek (1996, p. 14) ao defender que
Como indicação da variedade de significados, segue uma lista proposto por Eagleton contendo
algumas definições de ideologia: a) o processo de produção de significados, signos e valores na vida
social; b) um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou classe social; c) ideias que
ajudam a legitimar um poder político dominante; d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder
político dominante; e) comunicação sistematicamente distorcida; f) aquilo que confere certa posição a
um sujeito; g) formas de pensamento motivadas por interesses sociais; h) pensamento de identidade;
i) ilusão socialmente necessária; j) a conjuntura de discurso e poder; k) o veículo pelo qual atores
sociais conscientes entendem o seu mundo; l) conjunto de crenças orientadas para a ação; m) a
confusão entre realidade linguística e realidade fenomenal; n) oclusão semiótica; o) o meio pelo qual
os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social; p) o processo pelo qual a vida social
é convertida em uma realidade natural (EAGLETON, 1997, p. 15-16).
10
31
devemos “interpretar essa própria multiplicidade de determinações [...] como um
indicador de diferentes situações históricas concretas”.
Por conseguinte, um aspecto importante desta discussão está na
transversalidade do tema da ideologia, fazendo com que ele seja algo que não é
“possível discutir (...) de modo aprofundado sem inquirir as bases fundantes das
diversas abordagens e sem considerar os autores e as obras em sentido abrangente”
(SOARES DO BEM, 2013, p. 96). Tratar sobre a ideologia, neste sentido, exige uma
abordagem crítica sobre o enfoque teórico e um recorte específico de seu contexto,
de modo contrário há o risco de reduzi-la à pura abstração, situação onde o conceito
evapora-se num esvaziamento de significados e de potencialidades.
Por ora, este capítulo, bem como o capítulo anterior, intencionou abordar
sobre o conceito de ideologia no interior de discussões fecundas nos séculos XIX e
XX, de modo a que se pudesse resgatar os principais momentos de seu percurso
histórico e teórico. Nosso objetivo foi explicar as bases a partir das quais os seus
intrincados desdobramentos se fazem inteligíveis. Foi possível, portanto, através
desse movimento, delinearmos um panorama – o mais geral possível – que facilitasse
a visualização e a localização da contribuição específica da Teoria Crítica na tensa
trajetória do conceito de ideologia (respondendo afirmativamente à pergunta que dá
título ao capítulo) para que, nos próximos capítulos, direcionássemos a discussão ao
tratamento propriamente dito da crítica da ideologia produzida pela Teoria Crítica.
32
3 Adorno e Horkheimer: a Teoria Crítica e a crítica da “razão instrumental”
Após a contextualização das concepções atribuídas à ideologia desde o seu
primeiro uso ao brevíssimo resgate teórico do conceito entre autores representativos
do pensamento social, dedicaremos este capítulo à crítica da ideologia intimamente
ligada à proposta e à identidade da Teoria Crítica.
Formalmente chamada de Teoria Crítica, esta tradição intelectual surge como
uma nova proposta teórica a partir do ensaio intitulado Teoria Tradicional e Teoria
Crítica, publicado em 1937 por Marx Horkheimer que à época estava à frente do
Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt como diretor. Este ensaio é considerado um
“verdadeiro manifesto da Escola de Frankfurt”, nas palavras de Olgária Matos (1993,
p. 18), e o marco inicial de uma teoria vista como “elo de ligação” entre os diversos
pesquisadores e gerações frankfurtianas, conforme defende também Arêas (2007, p.
38). Com este ensaio, Horkheimer inicia uma discussão que lançará olhares
completamente novos ao moderno pensamento sociológico da época (FREITAG,
1994, p. 36). A Teoria Crítica desenvolvida pelos teóricos do Instituto de Pesquisa
Social de Frankfurt não pretendeu ser mais uma teoria entre as existentes, e nem
partiu de uma proposta metodológica que rompesse definitivamente com as demais.
Sua realização efetivar-se-ia a partir da incorporação dos pressupostos das teorias
“tradicionais”, e que, ao colocá-los neste processo em tensão com o seu momento
histórico de produção, integraria dados novos a um corpo teórico já desenvolvido
(Idem, p. 36-37). Não podemos deixar de destacar, deste modo, que a Teoria Crítica
partiu de uma crítica do modo de desenvolvimento científico da época como uma
denúncia da teoria como “ideologia”. Nos termos de Matos (1993), para esta tradição
intelectual, houve a “queda da teoria em ideologia”, isto quer dizer que a teoria se
converteu “em estratégia política, simetricamente oposta ao trabalho da reflexão”
(1993, p. 22). Dizendo de outro modo, as chamadas Teorias Tradicionais,
desvinculadas de sua relação com o social, declinaram-se em ideologias.
À luz desta reflexão inicial, convém recuperarmos, por conseguinte, alguns
dos aspectos mais relevantes acerca da Escola de Frankfurt e de seus principais
integrantes, o quais que serão de extrema importância para a nossa discussão.
Apesar de ser chamada de “escola”, se levado em consideração a sua
identidade e as categorias que tentem a rotulá-la no interior de grandes áreas como a
“Filosofia”, “Sociologia”, “Política”, a Escola de Frankfurt “não é nem escola filosófica,
33
nem um discurso sociológico, nem um movimento político no sentido estrito destes
termos” (ASSOUN, 1991, p. 05). A Escola de Frankfurt surgiu no ano de 1923 com a
fundação do Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) na cidade de
Frankfurt (Cf. JAY, 2008, p. 47), e tende a designar as produções de um grupo de
intelectuais marxistas que intencionavam dialogar de forma inovadora com o
marxismo (FREITAG, 1994, p. 10). Para Paul-Laurent Assoun (1991) “não teria havido
Escola sem Instituto”, no entanto o Instituto como um suporte material e físico não
abrange o fenômeno histórico que caracteriza a Escola de Frankfurt como tal (1991,
p. 07). Com relação aos sistemas teóricos que configuram representações singulares
da Teoria Crítica, é importante ter em consideração que a noção de “teoria crítica” não
remete “a uma unidade compartilhada de modo idêntico” pelos pensadores
frankfurtianos, como bem salienta Soares do Bem (2013, p. 86). Uma das mais
expressivas e marcantes características desta tradição intelectual é, na verdade, a
multiplicidade de orientações teórico-metodológicas entre seus integrantes. Levando
isso em consideração, Axel Honneth (1999), em ensaio que trata sobre os objetivos
metodológicos da primeira geração da Teoria Crítica, em uma interessante discussão
sobre a dinâmica de ligação e relevância de seus membros e de suas respectivas
contribuições, apresenta alguns nomes vinculados ao referido Instituto.
Os membros do Instituto foram divididos pelo que Honneth (1999) designou
em “círculo interno” e “círculo externo”.11 O “círculo interno” seria formado por Max
Horkheimer (1895-1973), Theodor W. Adorno (1993-1969), Herbert Marcuse (18981979), Leo Löwenthal (1900-1993) e Friedrich Pollock (1894-1970), autores,
principalmente os três primeiros, que alcançaram maior importância na imagem
pública da Teoria Crítica. Já o “círculo externo” seria integrado por Walter Benjamin
(1892-1940), Franz Neumann (1900-1954), Otto Kirchheimer (1995-1965) e Erich
Fromm (1900-1980), autores que tiveram participações relevantes no Instituto.
Honneth (1999) também menciona Jürgen Habermas como um importante
representante de uma segunda geração da Teoria Crítica. Veremos que ele próprio –
Axel Honneth – é atualmente um dos principais expoentes de uma terceira geração
da Teoria Crítica vinculada ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt.
Honneth (1999) deixa claro que esta seleção só foi possível de forma retrospectiva, uma vez que
só apenas a partir de uma posição marginal comum ao centro de debates da Teoria Crítica, como no
caso do “círculo externo”, permitiu juntar estes autores (1999, p. 516).
11
34
Resgatando as ponderações de Slajov Zizek (1996) acerca da relevância e
originalidade da crítica da ideologia desenvolvida pelos membros da Escola de
Frankfurt, expressas no primeiro capítulo deste trabalho, vale lançar luz a alguns
aspectos que as justifiquem. Em vista disso, Sheyla Benhabib (1996) afirma que os
frankfurtianos, no desenvolvimento de suas abordagens teóricas, “alteraram o próprio
sentido da crítica social marxista e da crítica das ideologias” (1996, p. 72). Este
aspecto apontado pela autora está relacionado ao que destaca Honneth (1999)
quando pontua que os objetivos metodológicos da fase inicial da primeira geração da
Teoria Crítica estavam voltados para uma “teoria interdisciplinar da sociedade”. Em
suas palavras:
A utilização sistemática de todas as disciplinas de pesquisa da ciência social
no desenvolvimento de uma teoria materialista da sociedade foi o principal
objetivo da teoria crítica; com isso ela esperava superar o velho purismo
teórico do materialismo histórico e reservar um lugar para a possibilidade de
uma proveitosa fusão fecunda entre ciência social acadêmica e a teoria
marxista (HONNETH, 1999, p. 505).
Sob esta orientação, a Teoria Crítica, por conseguinte, projetava uma ruptura
com uma abordagem do marxismo tradicional, ao fundar, para isso, um tipo de
“marxismo interdisciplinar” (Idem, p. 506).
Com relação ao desenvolvimento da crítica à ideologia, apesar de ela ganhar
“relevo com a liderança intelectual de Horkheimer na segunda metade dos anos de
1930”, sendo, portanto, “no contexto da crítica à teoria tradicional que a crítica à
ideologia se coloca como tarefa privilegiada da Teoria Crítica” (SOARES DO BEM, p.
86-87), tal debate, no entanto, não se restringe a esse momento que, segundo
Benhabib (1996), caracteriza tão somente uma das primeiras fases da Teoria Crítica. 12
Por conseguinte, este tema não cessa de prosseguir nas décadas seguintes
renovando-se e atualizando-se no interior desta tradição intelectual (NOBRE, 2004).
Até aqui introduzimos uma discussão mais abrangente acerca da ideologia,
incluindo as abordagens da Teoria Crítica sobre o tema; bem como uma
contextualização sobre a Escola de Frankfurt e os fundamentos da Teoria Crítica. A
partir deste momento, será possível ultrapassar o nível meramente descritivo dos
anteriores, através do enfoque e sistematização de conteúdos em torno da crítica da
Com relação à primeira geração da Teoria Crítica, “a evolução do programa de pesquisas do Institut
fur Sozialforschung pode ser dividida em três fases distintas: a fase do "materialismo interdisciplinar"
de 1932-37, a abordagem da "teoria crítica" de 1937-40 e a "crítica da razão instrumental" do período
de 1940 a 1945” (BENHABIB, 1996, p. 72).
12
35
ideologia presente numa seleção de textos produzidos pelos principais expoentes e
representantes geracionais da Teoria Crítica, conferindo, desta forma, um maior
aprofundamento ao que já vinha contando com pontuais considerações.
Uma reflexão acerca da temática da ideologia no âmbito da Teoria Crítica
possibilita a observação da recorrência deste debate e sobre como este conceito se
re/configura através das mudanças paradigmáticas e das renovações geracionais
desta tradição intelectual. Além disso, uma reconstrução do conceito de ideologia nas
principais vertentes teóricas da Teoria Crítica estaria intrinsecamente vinculado ao
objetivo de nossa reflexão que vem sendo desenvolvida neste estudo, e que vê com
grande interesse dois aspectos a serem explorados nessa relação: o primeiro remetese à densidade da crítica da ideologia feita pelos frankfurtianos, e o segundo referese aos elementos desta crítica que podem estar diretamente relacionados à identidade
da própria Teoria Crítica.
Ao partirmos de um recorte sobre os frankfurtianos, dedicaremos especial
atenção a seguir à reconstrução do conceito de ideologia em reflexões de Max
Horkheimer, Theodor Adorno, e Jürgen Habermas, principais representantes da
primeira e segunda geração da Teoria Crítica, assim como também em Axel Honneth,
autor que vem se afirmando como expressão de uma terceira geração e promessa de
renovação da Teoria Crítica. A abordagem sobre a ideologia se dará a partir da leitura,
mapeamento e reflexão sobre as especificidades de seus usos e nuances no âmbito
da Teoria Crítica. Terão neste capítulo enfoque analítico a obra Dialética do
Esclarecimento (1947), de Adorno e Horkheimer. No próximo capítulo, Habermas com
o ensaio Técnica e a ciência como “ideologia” (1968); e Honneth no capítulo
subsequente com o artigo El reconocimiento como ideología (2006).
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer são os precursores e representantes
da primeira geração da Teoria Crítica, como já destacamos em discussão acima. Em
conjunto produziram o livro Dialética do Esclarecimento, escrito no fervor da Segunda
Guerra Mundial e publicado em 1947, em que pese a divisão da autoria dos capítulos
(Cf. CHIARELLO, 2001, p. 145-146). Nesta obra, os autores desenvolveram uma
instigante reflexão sobre o fracasso do ideal iluminista de razão. A essa razão deram
o nome de razão instrumental. Esse tipo de razão, proposta em reflexão filosófica
pelos autores, “é responsável pela produção do irracional, pois manipula o homem e
a natureza exterior para fins egóicos, só reconhecendo o que garante um Eu
dominador de sensações, sentimentos e paixões” (MATOS, 1993, p. 56). Zizek (1996)
36
afirma que a ideia de razão instrumental não só designaria uma atitude funcional à
dominação social, mas serviria “como a própria base da relação de dominação” (1996,
p. 13).
A obra Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (1947) conta com
três ensaios filosóficos fragmentários. No primeiro, intitulado “O conceito de
esclarecimento”, os autores realizaram uma reflexão sobre as expressões de
esclarecimento presentes no mito e sobre a ameaça material da reversão do
esclarecimento à mitologia: “este entrelaçamento de esclarecimento e mito é
analisado da cultura mítica grega à cultura instrumentalista da modernidade”
(SINNERBRINK, 2017, p. 128). Essa reflexão é demostrada no livro em dois excursos:
o primeiro chamado “Ulisses ou o mito e esclarecimento” e o segundo, “Juliette ou
esclarecimento e moral”. O fio que liga as duas digressões atravessa a problemática
da dominação da natureza característica da racionalidade instrumental moderna
presente na ciência e na tecnologia que, por sua vez, resulta na dominação da
natureza interna (Idem, p. 129). No segundo ensaio, “A indústria cultural: o
esclarecimento como mistificações das massas”, a discussão é direcionada ao destino
da arte na Modernidade, a qual, conforme destaca Sinnerbrink (2017), regredira ao
mero entretenimento e distração ideológica e que, consequentemente, perderia o seu
teor crítico (2017, p. 129). A obra termina com o ensaio “Elementos do Anti-semitismo:
limites do esclarecimento”, onde os autores levantam uma discussão sobre “as raízes
psicológicas e sociais da reversão da civilização europeia à violência racista e à
destruição niilista durante a Segunda Guerra Mundial” (Idem, p. 129).
Em incursão na Dialética do Esclarecimento, Robert Sinnerbrink (2017)
esclarece que Adorno e Horkheimer desenvolveram uma explicação dialética sobre a
relação entre “razão esclarecida” e a “mitologia na Modernidade” baseados na
dialética de Hegel entre o esclarecimento e a fé (conceitos presentes na
Fenomenologia do espírito), além de a terem transformado (2017, p. 126). A partir de
uma abordagem incisivamente crítica da sociedade de sua época, os autores, com o
objetivo de demonstrarem como a mitologia desacreditada pelo esclarecimento e
como a razão proveniente do Iluminismo que garantiu as revoluções instauradoras da
ascensão da burguesia no século XVIII, apresentaram o que certamente se configura
como uma nova mitologia representada por uma “fé no progresso técnico, na
organização ‘racional’ da sociedade e na dominação da natureza” (Idem, p. 126).
37
A razão (instrumental) proveniente do Iluminismo teria um ideal que, para
Adorno e Horkheimer (1985), surgira como um “princípio esclarecedor” que
desvencilharia homens e mulheres das amarras dos mitos e da imaginação,
substituindo-os pelo saber através da razão (1985, p. 91). Compreender “por que a
humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, estaria se
afundando em uma nova espécie de barbárie” foi o primeiro impulso que moveu os
autores a desenvolverem sua análise em a Dialética do Esclarecimento. Mas eles
próprios admitiram que o empreendimento em responder tal questionamento estava
além de suas forças. Adorno e Horkheimer “tentaram diagnosticar os fundamentos
metafísicos e históricos das catástrofes da história do século XX (o nazismo, o
holocausto, o surgimento de totalitarismos ‘rígidos’ e ‘suaves’” (SINNERBRINK, 2017,
p. 127). Com a experiência norte-americana no exílio, desesperançosos, acreditavam
que esse novo cenário não se atenuava em relação ao nazifascismo e ao stalinismo
europeus, conforme pontua Soares do Bem (2013, p. 86).
O primeiro impasse com o qual se depararam no empreendimento de suas
reflexões foi com a investigação sobre o processo de autodestruição do
esclarecimento. Para Adorno e Horkheimer (1985), o progresso do pensamento
objetivava primordialmente livrar os sujeitos do medo e dotá-los da posição de
“senhores”; o esclarecimento atuaria, portanto, como um “desencantamento do
mundo”, como desvelador do mito e da imaginação, substituindo-os, assim, pelo
saber. No entanto, a sociedade industrializada apresenta-se com um paradoxo
bastante surpreendente: o total esclarecimento dera espaço a uma “calamidade
triunfal”. Nesse sentido, Adorno e Horkheimer (1985) afirmaram muito desoladamente
que
O progresso da sociedade industrial, que deveria ter eliminado como por
encanto a lei da pauperização que ela própria produzira, acaba por destruir a
ideia pela qual o todo se justificava: o homem (sic) enquanto pessoa,
enquanto portador de razão. A dialética do esclarecimento transforma-se
objetivamente em loucura (1985, p. 168).
A liberdade em uma sociedade é condição inseparável do pensamento
esclarecedor, entretanto, a sociedade industrializada, com sua racionalidade técnica,
teria em seu próprio germe a racionalidade da dominação, e com ela o projeto de
esclarecimento estaria fadado à autodestruição. Isso porque, ao se restringir à razão
instrumental, “a modernidade não conseguiu atingir o projeto iluminista da liberdade e
da autonomia” (SINNERBRINK, 2017, p. 130,132). Com relação à produção científica,
38
esta, ao não romper com uma “adoração fetichista de si mesma e de seus métodos”,
se converteu na mitologia que procurava combater, e por isso “não venceu o mito,
mas este se tornou o conteúdo de uma estrutura ‘racional’” como expressão do
“irracional no interior da própria razão que se converte em violência histórica”, como
bem destaca Matos (1993, p. 56). Em poucas palavras, essa situação, para Adorno e
Horkheimer (1895), consolidara-se com o surgimento da “indústria cultural”,
responsável pela produção de uma “cultura industrializada”, a qual desempenharia
papel fundamental para a regressão do esclarecimento à ideologia (1985, p. 15).
Com relação à indústria cultural, os autores denunciaram o funcionamento dos
meios de comunicação de massa e da indústria do entretenimento “como um sistema
que não só assegurou a sobrevivência do capitalismo como continua exercendo
função essencial em sua preservação, reprodução e renovação” (KONDER, 2002, p.
82). O cinema e o rádio seriam, assim, os veículos privilegiados através dos quais se
expressaria mais influentemente esse processo. O “esclarecimento”, deste modo, teria
cedido lugar ao papel da indústria cultural, responsável por fomentar “conformidade e
resignação entre os consumidores de bens culturais” (SOARES DO BEM, 2013, p.
91). A indústria cultural, portanto, não exerceria a aparente função de meramente
distrair ou entreter, mas desenvolveria o papel surpreendente enquanto “instituição de
aperfeiçoamento moral” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.15). Aperfeiçoamento
que, neste contexto, pode ser visto como submissão à lógica da dominação.
Matos (1993) salienta que o termo “indústria cultural” foi forjado pelos autores
como referência ao mecanismo de produção de uma cultura de massas que não seria
nem cultura e nem proveria das massas, antes seria “uma psicanálise ao revés”,
porque regressiva (1993, p. 62). Adorno e Horkheimer criticaram a “indústria cultural”
não por ser democrática, mas por não o ser, funcionando, deste modo, como um
veículo que escamotearia injustiças sociais, além de ser ela mesma uma expressão
de injustiça (Idem, p. 62).
Uma das críticas direcionadas à Adorno e à Horkheimer, assim como à
Marcuse (também representante da primeira geração da Teoria Crítica), recai
justamente sobre o enfoque de uma projeção do “universo ideológico ‘extremo’ do
fascismo nas estruturas inerentes diferentemente dos regimes capitalistas liberais”
(EAGLETON, 1997, p. 117). Na reflexão proposta no capítulo seguinte, será
apresentada a reflexão de Habermas, um importante expoente da segunda geração
da Teoria Crítica que supera o negativismo das obras de seus predecessores,
39
principalmente no que concerne aos horizontes críticos da Teoria Crítica. Mas
negativismo aqui deve ser compreendido como radicalidade da crítica, e não como
mera expressão da negligência diante dos rumos da história entre a primeira geração
da Escola de Frankfurt. O momento de produção da obra Dialética do Esclarecimento
exigia a radicalidade que a tornou conhecida e reconhecida. Seis milhões de judeus,
além
de
outros
grupos
igualmente
marginalizados,
foram
sistemática
e
“racionalmente” eliminados durante a guerra e a primeira geração de Frankfurt não
pode ser compreendida fora deste contexto. O negativismo, portanto, foi expressão
da realidade e não meramente do aparato teórico-conceitual de Adorno e Horkheimer.
Há um hiato de 21 anos entre a Dialética do Esclarecimento e o ensaio Técnica e
ciência como “ideologia” de Habermas. Neste intervalo de tempo, mudanças
estruturais significativas ocorreram nas sociedades europeias e em especial na
Alemanha do pós-guerra. Mas estas não serão aqui objeto de nossa reflexão.
Interessa-nos, por ora, as mudanças paradigmáticas.
40
4 Jürgen Habermas e a fundação da razão comunicativa
No capítulo anterior abordamos aspectos relevantes sobre a Escola de
Frankfurt, seus principais representantes e a teoria que os ligam a uma tradição
intelectual – a Teoria Crítica –, bem como iniciamos a reconstrução do conceito de
ideologia na obra de Adorno e Horkheimer. Neste capítulo, continuaremos a
reconstrução do conceito de ideologia a partir do ensaio Técnica e ciência como
“Ideologia”, de Jürgen Habermas – autor considerado como um dos principais
representantes da segunda geração da Teoria Crítica.
O ensaio Técnica e ciência como “Ideologia” (de 1968), somado com mais
quatro outros ensaios, compõe a obra de mesmo nome.13 Neste texto, Habermas
contesta concepções teóricas dos representantes da primeira geração da Teoria
Crítica (Horkheimer, Adorno e Marcuse), com relação ao que caracterizaram como a
racionalidade das modernas sociedades e, em contrapartida, defende uma
racionalidade que não seria proveniente exclusivamente de “leis” do mercado, mas
que se orientaria também pela ação comunicativa dos sujeitos (SOARES DO BEM,
2013, p. 94-95). Na obra como um todo que compreende este ensaio “encontram-se
embrionariamente todos os elementos da teoria da ação comunicativa”, com a qual
Habermas propõe uma nova concepção de razão, partindo para isso do
estabelecimento de uma relação entre sujeitos e não entre sujeitos e objetos como
estava posto entre os membros da primeira geração da Escola de Frankfurt (Idem, p.
94). Com esta teoria, Habermas refunda na Teoria Crítica “um paradigma alternativo
ao prevalecente modelo sujeito-objeto da ‘filosofia da consciência’”, como bem
destaca Robert Sinnerbrink (2017, p. 155).
Habermas (2014) inicia seu ensaio Técnica e ciência como “Ideologia” com a
apresentação do conceito de racionalidade em Weber, para, em sequência,
desenvolver apontamentos sobre a crítica de Marcuse a essa definição. A moderna
forma de racionalização compreendida por Weber como a expressão da “atividade
econômica capitalista, das relações do direito privado burguês e da dominação
burocrática”, e que significa “a expansão dos âmbitos sociais submetidos aos critérios
de decisão racional”, tratando-se, portanto, “da penetração do tipo de ação que pode
O livro Técnica e ciência como “Ideologia” (de 1968), de Jürgen Habermas, é uma compilação de
cinco ensaios que datam de 1963 à 1968. O ensaio que deu nome ao livro, datado de 1968, foi dedicado
ao septuagésimo aniversário de Herbert Marcuse.
13
41
ser descrita nos termos de uma ação racional com respeito a fins” (2014, p. 75).
Herbert Marcuse, segundo Habermas (2014), partiria desta definição weberiana para
apontar determinadas implicações imanentes de seu conteúdo. Para Marcuse, é
inerente à racionalização não somente um processo de “escolha correta entre
estratégias”, o “emprego apropriado da tecnologia” e a “instauração de sistemas para
fins estabelecidos em situações dadas”, uma decisão racional enquanto tal, mas
formas ocultas de dominação política (2014, p. 76-77, grifos do autor). A racionalidade
pensada nestes moldes inviabilizaria um processo de reflexão e consulta dos
interesses sociais contidos nas “estratégias eleitas, nas tecnologias empregadas e
nos sistemas instituídos”, o que consequentemente declinaria em formas de ações
que resultariam na dominação tanto da natureza quanto da sociedade (Idem, p. 7677). A racionalização, portanto, não seria apenas
um processo de transformação das estruturas sociais de longo prazo, mas,
ao mesmo tempo […] ela oculta seu motivo verdadeiro, a manutenção
objetiva de uma dominação historicamente caduca por meio da invocação de
imperativos técnicos. E essa invocação, por sua vez, apenas se faz possível
porque a racionalidade da ciência e da técnica já é, de forma intrínseca, uma
racionalidade manipuladora, uma racionalidade da dominação (HABERMAS,
2014, p. 80-81).
Diretamente ligada à institucionalização do processo científico e técnico, esta
forma de dominação, para Marcuse, estaria relacionada à progressiva racionalização
da sociedade. A Ideologia da Sociedade Industrial – o homem unidimensional,
originalmente publicada em 1964 por Marcuse, é uma obra significativa e que
contribuiu em grande medida com tais considerações de Habermas. Nesta produção,
Marcuse concorda em grande parte com as posições de Adorno e Horkheimer quanto
às concepções de ideologia, ao papel do totalitarismo e do liberalismo. Nela, a
ideologia é apresentada como um sistema totalitário que vincula as necessidades
humanas à lógica repressiva de submissão ao mercado e que, consequentemente, ao
monopolizar as expectativas de realização das pessoas, provocaria um desenfreado
processo de consumo (SOARES DO BEM, 2013, p. 92-93). “Explorar o processo pelo
qual a lógica se tornou a lógica da dominação” é o que Marcuse (1982) compreende
por uma “análise ideológica”, e desenvolvê-la é o que faz em sua obra, denunciando
o caráter conservador, estabilizador e protetor da ciência (tanto a formal quanto as
aplicadas) na legitimação da dominação das formas institucionalizadas da vida em
sociedade (1982, p. 125,159).
42
Para o autor, a sociedade altamente industrializada estaria se transmutando
em uma sociedade “unidimensional” porque engendrada e organizada para a
dominação dos sujeitos e da natureza, de modo cada vez mais eficiente. O conceito
de uma “sociedade unidimensional” está relacionado, portanto, à racionalidade
tecnológica com seu caráter de dominação política, na qual seria possível a
emergência de um universo totalitário que imobilizaria a sociedade em defesa da
manutenção desse próprio universo. Sob este aparato social, a ideologia se
expressaria a partir de atitudes nefastas e resignadas equivalentes a “nascemos e
morremos racional e produtivamente, [sabemos] que a destruição é o preço do
progresso [...], que a renúncia e a labuta são os requisitos para a satisfação e o prazer,
que os negócios devem prosseguir e que as alternativas são utopias” (Idem, p. 143).
Para Marcuse, concepções como essas garantiriam os mecanismos de continuidade
da racionalidade apta a aprofundar o controle social.
Em sua discussão, Habermas (2014) chama atenção para a crítica que
Marcuse dirige ao próprio conceito de razão técnica. Habermas (2014) pondera para
o fato de que Marcuse deve aos estudos de alguns pensadores a gênese de suas
reflexões no que se refere à ideia geral acerca da formação histórica da racionalidade
da ciência moderna: à Husserl “sobre a crise europeia, quanto à destruição
heideggeriana da metafísica” e à Bloch, para quem, num contexto materialista, o
desenvolvimento “do ponto de vista de que a racionalidade científica distorcida pelo
capitalismo” também faria com que a técnica moderna perdesse “a inocência de uma
simples força produtivista”. Mas, Habermas (2014) enfatiza que Marcuse é o único a
fazer com que o “‘conteúdo político da razão técnica’ seja tomado como ponto de
partida analítico de uma teoria social do capitalismo tardio” (2014, p. 81). A tese de
que talvez “o próprio conceito de razão técnica seja ideologia”, proposta por Marcuse,
portanto, é retomada por Habermas, mas com a enfática afirmação de que a técnica
e a ciência se configuram como “ideologia” (Idem, p. 77).
A ciência e a técnica se transformaram em um tipo de “ideologia tecnocrática”,
através da qual “questões políticas não podem mais ser resolvidas politicamente, à
base de negociações e lutas, e sim, tecnicamente, de acordo com o princípio
instrumental de meios ajustados a fins” (FREITAG, 1994, p. 94-95). Diante da fusão
defendida por Marcuse entre “a tecnologia e a dominação” e “a racionalidade e a
opressão”, a emancipação estaria ligada à “revolução” da própria técnica. No entanto,
Habermas (2014) aponta uma ambiguidade do pensamento de Marcuse, a qual se
43
faria presente quando este último teria em mente “uma atitude alternativa para com a
natureza”, quando dela “não se pode auferir a ideia de uma nova técnica” (2014, p.
84, grifos do autor). Tanto a ideia de uma nova técnica quanto uma nova ciência “caso
ela tenha de suspender, em nosso contexto, o comprometimento da ciência moderna
como a possível disponibilidade técnica”, não parece uma ideia defensável, para
Habermas (2014, p. 85-86). A revolução defendida por Marcuse, nestes moldes, teria
o seu significado atenuado a apenas uma “transformação” do quadro institucional, o
que não alteraria a estrutura técnico-científica, só os valores que os dirigem seriam
modificados (Idem, p. 84). O que haveria de novo na proposta de Marcuse, segundo
Habermas (2014), se limitaria, na realidade, a uma diferente direção desse progresso
que não chegaria a alterar o próprio padrão de racionalidade (2014, p. 86). Para
Habermas, como argumenta Freitag (1994), a indeterminação em Marcuse estaria na
negociação de uma suposta alternativa que não seja “a superação da moderna
sociedade capitalista” a partir de uma “transformação radical da ciência e da
tecnologia que nela atuam, impondo-se a necessidade de reformular essencialmente
o seu conceito” (1994, p. 95, grifos nossos).
Seguindo a linha de raciocínio de Habermas, como um primeiro momento
tivemos a definição do conceito de racionalidade em Weber, seguida da crítica de
Marcuse às limitações e consequências do que constituiria um processo de
racionalização da sociedade. Como segundo momento, Habermas expõe suas
considerações ao chamar atenção para uma ambiguidade nas ponderações de
Marcuse. Habermas, em seu ensaio, sintetiza os dos dois momentos até aqui
expostos: “considera que o crescente intervencionismo estatal, por um lado, e a
transformação da ciência e da técnica em forças produtivas e ideologia, por outro,
alteram as formas de legitimação do poder” (FREITAG, 1994, p. 95, grifos da autora).
Tendo isto posto, Habermas desenvolve uma nova base tanto à crítica que Marcuse
dirige à Weber, quanto à tese de Marcuse da dupla função do processo técnicocientífico, isto é, como força produtiva e como ideologia (HABERMAS, 2014, p. 88).
Num diálogo com os autores que o precedeu, Habermas, desta forma, reformula o
conceito de racionalidade weberiano, desmembrando-o em diferentes categorias de
racionalidade, e com isso desenvolve a distinção entre dois tipos de racionalização
social: a racionalidade de cima para baixo e a racionalidade de baixo para cima.14 No
14
Habermas dá especial enfoque sobre esses conceitos em sua Teoria da Razão Comunicativa.
44
novo contexto das sociedades altamente racionalizadas, a ideologia surgiria como
forma de impedir a tematização de fundamentos sociais para o asseguramento da
lealdade das massas. Habermas (2014), neste sentido, destaca a existência de duas
condições para a ideologia: a velha ideologia e a nova. A primeira seria conquistada
pela repressão coletiva das massas, já a segunda se diferenciaria justamente na
estratégia de “conquistar a lealdade das massas em troca de compensações de suas
necessidades privatizadas” (2014, p. 118). Para o autor, a “nova ideologia fere um
interesse inerente a uma das duas condições fundamentais de nossa existência
cultural: a linguagem ou, mais exatamente, a forma de socialização e individuação
determinada pela comunicação linguística” (Idem, p. 119). Isso porque a nova
ideologia agiria ao despolitizar as pessoas, tornando desnecessárias certas
normatizações interativas, e, consequentemente, certas organizações da vida em
comum. Nesse sentido, “a ideologia (…) [seria] uma forma de comunicação
sistematicamente distorcida pelo poder – um discurso que se tornou um meio de
dominação e que serve para legitimar relações de forças organizadas” (EAGLETON,
1997, p. 118).
Finalmente, salientamos que Habermas supera o negativismo das obras de
seus predecessores, desconstruindo simultaneamente a ideia iluminista de que o
interesse transportaria conteúdos contrários à produção da verdade científica, ao
argumentar que não é este que ameaça “nossas exigências fundamentais como
espécie” (Idem, p. 120), e que o oposto da ideologia não é exatamente a verdade ou
o conhecimento, “mas aquela forma particular de racionalidade ‘interessada’ que
chamamos crítica emancipatória” (Ibidem, p. 121). Habermas não apenas supera o
negativismo das obras de seus predecessores, como também, ao incorporar o
conceito de “interação”, extraído da obra de juventude de Hegel, abre horizontes para
a expansão da Teoria Crítica, inscrita nos postulados da Teoria do Reconhecimento
de Axel Honneth.
45
5 Axel Honneth e o reconhecimento enquanto ideologia
Depois de termos desenvolvido a reconstrução do conceito de ideologia em
Adorno, Horkheimer e Habermas, neste quinto e último capítulo daremos continuidade
à reconstrução do conceito em Axel Honneth a partir de seu artigo El reconocimiento
como ideología (2006).
Axel Honneth, com a Teoria do Reconhecimento, em pouco mais de duas
décadas vem alcançando relevante posição nas discussões contemporâneas da
Filosofia Política e Social. Com uma versão pós-metafísica da teoria hegeliana do
reconhecimento, baseada na psicologia de Georg H. Mead, segundo a qual fornece
um quadro teórico para a análise da gramática moral dos conflitos sociais
(SINNERBRINK, 2017, p. 173), a Teoria do Reconhecimento surge como promessa
de reiterada renovação da Teoria Crítica. A partir da proposta de sua teoria, Honneth
busca extrair dos conflitos e de suas configurações sociais e institucionais as gêneses
normativas com as quais se evidenciam as lógicas dos mecanismos modernos de
poder (MATTOS, 2017, p. 18). Ao dimensionar, deste modo, o conflito como
fundamento social da Teoria Crítica, a Teoria do Reconhecimento, em síntese, se
constitui como “uma teoria social mais próxima das ciências humanas e de suas
aplicações empíricas” (NOBRE, 2009, p. 17-19).
Não obstante, ao mesmo tempo em que a Teoria do Reconhecimento vem se
consolidando enquanto um lugar central para a normatização de esforços políticos
emancipatórios (inscritos principalmente nas pautas e agendas dos movimentos, de
organizações e grupos sociais), surgem também dúvidas quanto ao seu potencial
crítico (HONNETH, 2006; MATTOS, 2017; MENDONÇA; PORTO, 2017). Para alguns
de seus críticos, os postulados desta proposta teórica escamoteariam “assimetrias
econômicas, engessando e essencializando identidades, ou até mesmo alimentando
a lógica que embasa a opressão” (MENDONÇA; PORTO, 2017, p. 145). Já para
outros estudiosos, assim como Patrícia Mattos (2017), a Teoria do Reconhecimento
deve lidar com esses impasses de modo a explicitar a relação entre as categorias que
se articulam – de “moralidade” e “poder” –, de modo a explicar “porque nem todas as
lutas por reconhecimento se transformam em aprendizado coletivo”, e com este
empreendimento implicaria “considerar, diferenciar e explicitar a contradição entre as
formas éticas e ideológicas de reconhecimento” (MATTOS, 2017, p. 19).
46
Não alheio a esse debate, Honneth (2006) em El reconocimiento como
ideología (2006),15 como resposta às críticas que vêm sofrendo, propõe uma reflexão
sobre a existência de formas de reconhecimento moral e social que se caracterizam
como ideológicas. A pergunta “como podem existir no presente formas de afirmações
públicas de um valor social, de reconhecimento, mas que simultaneamente
apresentam um caráter de dominação?”16 norteia a sequência de argumentos
proposta por Honneth em seu texto. Este questionamento, ainda segundo Mattos
(2017), perpassa todo o debate contemporâneo sobre o reconhecimento e se
apresenta como um de seus principais desafios.
Ao partir de questionamentos que teriam como base a ideia de
reconhecimento ideológico, bem como a concepção de ideologia de Louis Althusser,
que põem em dúvida o potencial crítico da Teoria do Reconhecimento, Honneth (2006)
nega que tenha havido negligência da Teoria do Reconhecimento sobre situações que
impliquem em submissão ou dominação de sujeitos. Isso porque, em princípio,
el impulso crítico de tal teoría se deriva sólo de las manifestaciones sociales
de reconocimiento fallido o defectuoso: la mirada debe dirigirse a las prácticas
de humillación o envilecimiento a través de las cuales les es escatimada a los
sujetos una forma fundada de reconocimiento social y con ello una condición
decisiva de la formación de su autonomía (HONNETH, 2006, p. 131).
Sendo impossível desconsiderar as reflexões de quase meio século sobre o
conceito de ideologia propostas por Althusser, Honneth (2006) pontua que
aparecen a la luz formas de reconocimiento que son efectivas como medios
del dominio social porque producen, según el modelo de la confirmación
ritual, una imagen de sí mismo conforme con la sociedad y por consiguiente
contribuyen a la reproducción de las relaciones de dominio existentes (2006,
p. 131).
Tendo isso em vista, Honneth (2006) empreende uma crítica ao conceito de
reconhecimento ideológico de Althusser. Para melhor compreendê-la, há a
necessidade de resgatarmos o que Althusser compreende por ideologia e por
reconhecimento ideológico.
Este texto foi publicado originalmente com o título “Anerkennung als Ideologie” em WestEnd, Neue
Zeitschrift für Sozialphilosophie, nº 1, octubre 2004, p. 51-70. A versão em espanhol utilizada neste
estudo foi traduzida por José Manuel Moreno Cuevas (Cf. Honneth, 2006). Uma versão em português,
traduzida por Ricardo Crissiuma, sob o título Reconhecimento como ideologia: sobre a correlação entre
moral e poder, foi encontrada já no final do desenvolvimento deste trabalho, por isso optamos em nos
manter com a versão em espanhol. A bibliografia das duas versões encontra-se nas referências ao final
deste trabalho.
16
“¿Cómo pueden poseer en el presente formas de afirmación pública de un valor social, por lo tanto
de reconocimiento, simultáneamente un carácter de dominio?” (HONNETH, 2006, p.133).
15
47
Com a reconstrução do conceito de ideologia desenvolvida nos capítulos
anteriores,17 foi possível observarmos que, para Althusser (1985), “a ideologia
‘representa’ a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência” (ALTHUSSER, 1985, p. 88). E, desta forma, para este autor, toda formação
social funcionaria por meio da ideologia. Os AIE, os Aparelhos Ideológicos do Estado
(a variedade de instituições distintas e especializadas), diferentemente dos aparelhos
repressivos de Estado que se utilizam da violência (o exército, a polícia, os tribunais,
as prisões, etc), funcionariam, por sua vez, através da ideologia (ALTHUSSER, 1985,
p. 69). Neste sentido, os AIEs seriam responsáveis por “moldar” o comportamento
prático das ações dos indivíduos a partir de “práticas regulamentadoras” – rituais que
surgem no interior de determinado AIE. Althusser, ao defender a materialização da
ideologia em instituições que tendem a “moldar” a consciência dos indivíduos através
do que denomina de “submissão voluntária”, supera, assim, a concepção deste
conceito enquanto mera expressão de um “sistema de ideias” (SOARES DO BEM,
2013, p. 83-84). É de fundamental importância mostrarmos com que mecanismos a
ideologia, para Althusser, “convence” os indivíduos. Seguindo a linha teórica de seu
pensamento, a ideologia interpelaria os indivíduos como sujeitos, proporcionando,
deste modo, um reconhecimento ideológico. Isso se daria a partir de um “jogo de dupla
constituição que se efetiva no funcionamento de toda a ideologia, ao passo que a
ideologia nada é além de seu funcionamento através das formas materiais da
existência desse funcionamento” (ALTHUSSER, 1995, p. 210).
Já que em Althusser toda forma de reconhecimento se caracteriza como
ideológica, para Honneth (2006), uma vez que tal definição de reconhecimento não
permite a diferenciação entre formas de reconhecimento correto ou falso, justificado
ou ideológico, esta concepção de reconhecimento configura-se, portanto, como
unidimensional (2006, p. 133). Isso porque, do ponto de vista conceitual, o
reconhecimento seria o oposto das formas de submissão, dominação ou de situações
que apresentam tais características, estas deveriam ser consideradas como formas
de negação de reconhecimento (Idem, p. 131). Deste modo, Honneth pontua que o
problema colocado para ele não existe para Althusser (Ibidem, p. 133).
Para sustentar seus argumentos, e como forma de distanciar-se da proposta
de Althusser, Honneth (2006) apresenta elementos que definiriam o conceito de
17
Com relação ao conceito de ideologia em Louis Althusser, Cf. p. 27-29 deste trabalho.
48
reconhecimento. Neste sentido, num primeiro momento defende como práxis de
reconhecimento aquelas que não são funcionais à dominação ou à submissão: as
formas de reconhecimento que não fortalecem a autonomia individual, mas sim a
produção de atitudes em conformidade com relações de domínio existentes, são
consideradas, segundo o pensamento do autor, como falsas ou injustificáveis, e se
caracterizariam, deste modo, como formas de reconhecimento ideológicas
(HONNETH, 2006, p. 131). Mendonça e Porto (2017), em concordância com Honneth,
pontuam que o falso reconhecimento é ideológico “não porque limitado ou incompleto,
mas porque incapaz, em sua base, de promover justiça” (2007, p.162). O problema
agora estaria na distinção entre formas ideológicas de reconhecimento social das
moralmente justificadas. Honneth (2006) resgata alguns exemplos que se apresentam
como formas de valorização que até pouco tempo eram bem aceitos pela sociedade,
como “o papel da boa dona de casa”, “o bom escravo” e “o soldado heroico”. Estes
exemplos, apesar de triviais, expressam com contundência o quanto um
reconhecimento social pode configurar-se como formas de reconhecimento falsas ou
ideológicas, atuando a partir de uma ideologia geradora de conformidade (HONNETH,
2006, p. 131). Essas configurações só são possíveis porque, para o autor:
(…) la repetición continuada de las mismas fórmulas de reconocimiento
alcanza sin represión el objetivo de producir un tipo de autoestima que provee
de las fuentes motivacionales para formas de sumisión voluntaria
(HONNETH, 2006, p. 131).
Mendonça e Porto (2017) chamam atenção para a compreensão do conceito
de reconhecimento em seu caráter processual (2017, p. 150). O próprio Honneth
(2006) declara ser este aspecto um dos primeiros desafios a orientar esta discussão.
No que se refere à dificuldade de distinguir entre formas de reconhecimento ideológica
das formas de reconhecimento legítimas, para Honneth (2006),
La elección de los mismos ejemplos así como los medios de su descripción
son el resultado de un juicio moral que sólo puede ser admitido desde la
perspectiva de un presente moralmente más desarrollado: nosotros, que
somos contemporáneos de una época que se tiene por moralmente reflexiva
frente al pasado, estamos seguros de que la valoración del esclavo virtuoso,
de la buena ama de casa y del heroico soldado, tuvo un carácter puramente
ideológico; si nos desplazamos por el contrario al pasado correspondiente,
parece incomparablemente más difícil diferenciar entre una forma de
reconocimiento falsa, ideológica, y una forma correcta, exigida moralmente
(2006, p. 131-132, grifos do autor).
Podemos, então, verificar com a citação acima que identificar uma forma de
reconhecimento ideológica sem estar situada historicamente é um dos principais
49
desafios a girar em torno do tema. Tal dificuldade, nas palavras de Honneth (2006),
estaria no fato de que
la valoración pierde su peso con la distancia temporal que nos separa de los
casos tratados, pues cuanto mayor es la distancia temporal más claramente
dispondremos de criterios aceptados universalmente que nos permitan la
distinción entre formas de reconocimiento ideológicas y exigidas moralmente
(HONNETH, 2006, p. 132).
Em consonância com as ponderações de Honneth, Mendonça e Porto (2014)
utilizam o conceito de misrecognition,18 e com ele tentam apreender o reconhecimento
situado historicamente. Argumentam, por conseguinte, que “a própria dinâmica do
reconhecimento é atravessada por formas de misrecognition, na medida em que não
existe um estágio final de justiça pleno e completo” (MENDONÇA; PORTO, 2007, p.
150). O “que é compreendido como misrecognition atualmente poderá tanto se
mostrar como uma forma de não reconhecimento no futuro, como se desdobrar em
formas mais emancipatórias de reconhecimento” (Idem, p. 150). O conceito de
reconhecimento, por esse motivo, deve ser compreendido sem perder de vista o seu
caráter histórico e processual.
Partindo de suas reflexões sobre Althusser, Honneth (2006) ainda busca
evidenciar como as formas ideológicas de reconhecimento são apenas raramente
irracionais. Essa irracionalidade não residiria na superfície semântica das próprias
palavras valorativas, mas na discrepância entre a promessa e sua realização material
(2006, p. 133). Como uma forma de sair desse impasse, Honneth (2006) propõe uma
análise detalhada do núcleo irracional das ideologias de reconhecimento, e argumenta
em prol da credibilidade do reconhecimento social, o qual teria por finalidade
fundamental tornarem-se direitos institucionais e materiais (2006, p. 133).
Honneth
(2006)
estabelece
alguns
critérios
que
permitem
definir
normativamente entre formas ideológicas das não ideológicas de reconhecimento. As
formas ideológicas de reconhecimento, a princípio, seriam o
contrario de las ideologías excluyentes, que por así decirlo violentan el
horizonte de percepción evaluativo del presente, entanto que se tornan ciegas
para determinadas cualidades de valor de grupos de personas, las ideologías
del reconocimiento operan en el marco de las razones históricamente
existente: amplían de alguna manera sólo las cualidades evaluativas que
hemos aprendido a percibir en seres humanos hacia un nuevo significado que
em efecto posee, en su aplicación exitosa, la cualidad de producir una
18
Mendonça e Porto (2007) utilizam o conceito de Misrecognition (falso reconhecimento) diferenciandoo do não reconhecimento (que seria uma negação da condição humana) dentro da proposta do livro
The Polítics of Misrecognition, organizado por Simon Thompson e Majid Yar (2011), no qual são
exploradas situações de não reconhecimento ou de falso reconhecimento por meio de uma série de
estudos empírico (MENDONÇA; PORTO, 2007, p. 149 -150).
50
relación consigomismo ajustada a la función y adaptativa (HONNETH, 2006,
p. 142-143).
Uma vez que as formas ideológicas de reconhecimento mobilizam e estão
fundamentadas em valores presentes em nosso horizonte valorativo (2006, p. 133),
quatro categorias são utilizadas para delinear e configurar a ideia de reconhecimento
moralmente justificado, proposta por Honneth (2006) como forma de diferenciá-la das
formas ideológicas de reconhecimentos, a saber: as afirmações das qualificações
positivas
de
sujeitos
ou
grupos;
as
atitudes
de
reconhecimentos
como
comportamentos expressos em atitudes eficazes no plano da ação; o reconhecimento
voltado positivamente para a existência de outra pessoa ou grupo; e o reconhecimento
como expressão genérica em três esferas – o amor, o respeito jurídico e a estima
social (2006, p. 134-135).
51
Considerações finais
Depreende-se de todas as reflexões desenvolvidas ao longo de nossa
investigação que a crítica da ideologia vem sendo uma tarefa empreendida por
estudiosos de épocas, áreas de conhecimento e correntes teórico-metodológicas
diversas, sendo também variados os sentidos e funcionalidades atribuídos ao conceito
de ideologia. Além de apresentarmos as especificidades da discussão sobre a
ideologia no interior de diferentes tradições intelectuais, também evidenciarmos
efetivamente sua controversa “natureza”, bem como, a partir de uma reconstrução
teórica do conceito de ideologia, demonstramos sua complexa capacidade de se
reconfigurar nos sistemas teóricos dos principais representantes da Teoria Crítica.
A necessidade de, como ponto de partida, termos proposto uma reflexão
sobre a relação entre as Teorias da ideologia e a Teoria Crítica pretendeu ir além de
uma tentativa de selecionar uma ponta do fio desta intrincada trama que é o debate
sobre a ideologia. Partiu, a princípio, de elementos que estão relacionados à
relevância e à recorrência das discussões sobre o tema da ideologia no interior da
Teoria Crítica. Observamos nesta relação aspectos da crítica da ideologia
empreendida por seus integrantes em contribuição com as Teorias da ideologia, assim
como aspectos que levam em consideração a importância da crítica da ideologia para
as abordagens teóricas que fomentaram a própria Teoria Crítica, ou seja, que a crítica
da ideologia é parte constitutiva dessa própria tradição intelectual.
O enfoque sobre estas duas vertentes – a ideologia em sua dimensão teórica
em relação direta com as abordagens da Teoria Crítica – possibilitou, por sua vez, a
leitura, mapeamento e reflexão sobre as especificidades dos usos do conceito de
ideologia no âmbito da Teoria Crítica, o que foi desenvolvido tendo como corpus uma
seleção de obras produzidas pelos principais expoentes e representantes geracionais
da Escola de Frankfurt. Analisar as especificidades do conceito de ideologia no âmbito
das gerações (em produções específicas), a partir de um processo de reconstrução
do conceito, foi o objetivo central deste trabalho. A partir disso, foi possível
observarmos como os diferentes autores constroem seus instrumentos teóricoconceituais e representam os fenômenos sociais, circunscritos em torno da
problemática abordada pela Teoria Crítica.
No que se refere à reconstrução teórica do conceito de ideologia, vale
ressaltar que, embora esse tipo de abordagem pareça simples, exige, no entanto,
52
alguns cuidados que vão desde a escolha de critérios bem claros de seleção do corpus
a ser analisado (obras que tenham a discussão mais direcionada o possível sobre a
temática e/ou as que tendem a abordar a problemática através de elementos presente
em um plano de fundo, por exemplo), passando por escolhas que levem em
consideração o contexto da produção e publicação, bem como a recepção de tais
obras, como forma de se evitar anacronismos na análise, assim como também
preservar uma abordagem crítica do recorte selecionado, evitando com isso o uso
instrumental ou dogmático de seus conceitos e teorias.
Um aspecto importante que norteou todo o processo de reconstrução do
conceito de ideologia, está na sua transversalidade temática. Ou seja, não só o
conceito ganha uma configuração nova a depender da corrente teórica que o aborda,
quanto mais eclipsa-se a depender de determinados pontos de vistas. Esta
plasticidade – no sentido mais vulgar do termo – de a questão da ideologia se
dissimular em cada sistema teórico-metodológico específico, talvez seja um problema
para alguns, como apresentado no primeiro capítulo deste estudo, mas certamente
este é um dos seus mais interessantes aspectos, e que ganha especial dimensão no
tocante à sua relação com as abordagens da Teoria Crítica. No que se refere à relação
da ideologia com esta tradição intelectual que se renova a cada geração e a cada
novo paradigma, evidenciamos que a questão da ideologia também se renova de
modo persistente e, em sua recorrência, não deixa de configurar-se sempre a partir
de novas dinâmicas históricas e estruturais. Neste sentido, as reflexões sobre a Teoria
Crítica possibilitaram o desenvolvimento de ilações aptas a demonstrar a capacidade
de reconfiguração decorrente de modos distintos de situar na história a racionalidade,
a consciência e as ações humanas.
Tendo abandonado o caminho de tentar apreender qual a definição de
ideologia seria a mais adequada ou qual teria maior veracidade, optamos por
demonstrar que o caráter polêmico e polissêmico do conceito de ideologia nos convida
à reflexão circunstanciada de que os diferentes sistemas teóricos têm suas gramáticas
próprias e só podem ser concretamente reconstruídos a partir do pressuposto de que
é imperativa a noção de perspectiva como elemento balizador da Teoria Social. Esse
parece ser um caminho frutífero e promissor para fazer jus ao interesse comum de
todos os autores aqui considerados, que é o de refletir criticamente sobre o avanço
da racionalidade cega que tem dominado as sociedades modernas contemporâneas
e ameaçado a qualidade de vida humana em seu conjunto.
53
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