CURANDEIRAS E REZADEIRAS DA ALDEIA MÃO JOVINA: RITUAIS E ETNICIDADE ENTRE OS XUKURU-KARIRI EM TAQUARANA-AL
DISCENTE: TANÍSIA CONCEIÇÃO DOS SANTOS; ORIENTADORA: CLAUDIA MURA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS
TANÍSIA CONCEIÇÃO DOS SANTOS
Curandeiras e rezadeiras da aldeia Mãe Jovina: rituais e etnicidade entre os XukuruKariri em Taquarana-AL
Maceió
2018
TANÍSIA CONCEIÇÃO DOS SANTOS
Curandeiras e rezadeiras da aldeia Mãe Jovina: rituais e etnicidade entre os XukuruKariri em Taquarana-AL
Trabalho de conclusão de curso
apresentado ao Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de
Alagoas, como requisito parcial para
obtenção do grau de graduada em
Ciências Sociais – Licenciatura.
Orientadora: Profª. Drª. Claudia Mura
Maceió
2018
FOLHA DE APROVAÇÃO
TANÍSIA CONCEIÇÃO DOS SANTOS
Curandeiras e rezadeiras da aldeia Mãe Jovina: rituais e etnicidade entre os Xukurukariri em Taquarana-AL
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de
Alagoas, como requisito parcial para
obtenção de grau de graduada em Ciências
Sociais – Licenciatura.
Aprovado em: ____/____/____
Profª. Drª. Claudia Mura (ICS/UFAL) Orientadora
Banca examinadora:
Profª. Drª. Jordânia de Araújo Souza (ICS/UFAL)
Prof. Dr. Evaldo Mendes (ICS/UFAL)
A Deus.
À minha família e meus amigos.
Aos Xukuru-Kariri.
E para todas as curandeiras, rezadeiras,
curandeiros e rezadores que dedicam sua vida
a trazer alento aos que os procuram.
Benzedura
A bença da velha, eu peço,
Pra bem ficar protegida,
Em mão rugosa, confio,
A benza da fé acolhida.
Com o ramo tira quebranto,
Mistério pouco revelado,
Ave cruz, canto e credo!
Sara do mau olhado.
Socorro da mulher prenha,
Aconchego da criança,
Ajuda com erva santa,
Corpo fraco que se cansa
É dom fonte ancestral,
Quem recebe esse saber.
E se tiver pouca fé,
Nem adianta se benzer
[...]
Salve Deus! essas mão santa.
A cura do benzimento!
Escudo da santa cruz.
A graça que traz alento.
(Keyane Dias, 2014)
AGRADECIMENTOS
A minha graduação é fruto de um esforço coletivo nascido da coragem de pessoas
maravilhosas. Pessoas que em algumas vezes, nem se conheceram, mas que foram
fundamentais para essa realização. Quero agradecer primeiramente a Deus pelo dom sublime
da vida e por me presentear com “pequenos milagres” a cada dia. Ao meu pai José Roberto,
em memória, por me ensinar a enfrentar a vida com coragem e persistência. Nós, finalmente,
conseguimos painho! À minha mãe Vera Lúcia, por me ensinar a ser livre e que mesmo com
toda dificuldade que a vida impôs, nunca deixou de dar seu toque de humor à nossa criação.
Obrigada.
À minha avó Maria, por me ensinar que a fé, o amor e a generosidade são as forças
mais poderosas da terra. Ao meu avô José, por todas idas e vindas no bagageiro de sua
bicicleta. Obrigada. À minha irmã Thayse por sua sinceridade e apoio contínuo. Ao meu
irmão Lucas, por todas as reflexões e por junto com minha irmã ter enchido a minha infância
de cor e imaginação. Obrigada. Ao meu amado filho Matheus, por ter “adentrado” no mundo
intelectual junto comigo tão precocemente e por encher minha vida de alegria todos os dias.
Ao meu esposo e companheiro de todas as horas Flávio, por me amar a cada instante,
acreditar em mim e ser meu cúmplice mesmo quando discordamos. Obrigada.
À minha querida orientadora Claudia Mura, por toda a sua dedicação, carinho,
estímulo e por nunca ter desistido de mim, mesmo quando até eu desistia. O seu apoio foi
fundamental em todos esses anos que passaram tão depressa. Obrigada.
Aos meus colegas de graduação, Charlielle, Ana Luíza e Amauri em especial a amiga
Josielice por dividir comigo todos os anseios e receios da vida e da universidade. O seu
carinho tornou essa experiência muito mais rica. E a querida Vanise, por sempre me
incentivar a ter “força na peruca”! Obrigada
Quero agradecer a todos os professores do Instituto de Ciências Sociais por
contribuir com minha formação, aos funcionários do ICS, especialmente Lelan pelo
profissionalismo e cortesia de sempre, as tias do RU, a Pró-reitoria de extensão (proex), da
qual fui bolsista em parte da pesquisa e a Universidade Federal de Alagoas que tornou
possível a minha graduação me dando meios para que isso acontecesse. Agradeço também
aos meus colegas de equipe durante a pesquisa, em especial Ítalo e Ludmila pela solidariedade
incomparável nos momentos de crise. Obrigada. Finalmente, quero agradecer aos XukuruKariri por abrir as portas de sua casa nos recebendo sempre com carinho, permitindo a
realização desse trabalho. Obrigada.
RESUMO
O presente trabalho visa descrever e analisar os processos rituais realizados por uma parcela
de indígenas Xukuru-Kariri residentes em Taquarana que atualmente, denominam seu
território como Aldeia Mãe Jovina. Procuramos refletir sobre como esses processos se
relacionam com a construção da identidade coletiva vivenciada pelo grupo. Abordaremos
brevemente o conflito que impulsionou a reelaboração cultural e quais os efeitos resultantes
da situação. Ao longo do texto, apresentamos a reconstrução das trajetórias do grupo
doméstico, cujos dados foram produzidos durante o trabalho de campo, com destaque especial
para alguns interlocutores fundamentais para a elucidação do tema, como as irmãs rezadeiras,
Dona Cícera e Dona Joana, entre outros. Observamos que as curas realizadas pelas irmãs
outrora conferidas à Mãe Jovina, tem papel fundamental para o processo de construção
identitária, bem como para a manutenção da legitimidade política, moral e religiosa.
Focaremos, ademais, na elaboração de um ritual que observamos ser específico do grupo: a
Festa de padre Cícero. Este evento anual mostrou-se extremamente relevante no que se refere
a relação que os indígenas têm com o território e com os vínculos sociais mantidos e
construídos entre eles e as pessoas da região.
Palavras-chave: Identidade étnica, ritual, rezadeiras.
ABSTRACT
The present work aims to describe and analyze the ritual processes carried out by a portion of
Xukuru-Kariri indians living in Taquarana, who nowadays denominate their territory as
Aldeia Mãe Jovina. We seek to reflect on how these processes relate to the construction of
colletctive identity experienced by the group. We will briefly look at the conflict that has
driven cultural re-elaboration and the resulting effects of the situation. Throughout the text,
we present the reconstruction of the trajectories of the domestic group whose data were
produced during the field, with special emphasis on some key interlocutors for elucidation of
the theme, such as the sister rezadeiras, Mrs. Cícera and Mrs. Joana, among others. We
observe that the cures performed by the sisters, once conferred on the Mãe Jovina, play a
fundamental role in the processes of identity construction, as well as in the maintenance of
political, moral and religious legitimacy. We will focus, in addition, on the elaboration of a
ritual that we observe to be specific of the group: the feast of father Cícero. This annual event
was extremely relevant as regards the relationship that the indigenous people have with the
territory and social ties maintained and built between them and people of the region.
Keywords: ethnic identity, ritual, rezadeiras
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 – Apresentação de cartazes na oficina – p. 26
Imagem 2 – Mãe Jovina e Antônio Camilo – p. 32
Imagem 3 – Descida da Grota – p. 40
Imagem 4 – Descida na Grota e plantação de D. Cícera – p. 41
Imagem 5 – No terreiro de D. Cícera – p. 49
Imagem 6 – Casinha de Pe. Cícero – p. 61
LISTA DE CROQUIS, MAPAS E DIAGRAMA
Croqui 1 – Disposição das casas na aldeia – p. 27
Croqui 2 – Divisão do território e roças existentes – p. 28
Croqui 3 – Transformações ocorridas no território – p. 30
Mapa 1 – Alagoas – Delimitação do espaço territorial entre Palmeira dos Índios e Taquarana
– p. 24
Mapa 2 – De Palmeira dos Índios à Taquarana – p. 25
Mapa 3 – Brasil – Espaço territorial percorrido entre Ceará e Alagoas – p. 37
Mapa 4 – De Taquarana à Juazeiro do Norte – p. 37
Diagrama – Hierarquia cosmológica da Aldeia Mãe Jovina – p.65
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
Antes do campo ........................................................................................................................ 12
Aspectos teórico-metodológicos e a pesquisa de campo .......................................................... 14
Estrutura do trabalho ................................................................................................................ 18
Capítulo 1. O grupo indígena Xukuru-Kariri: processos históricos e a construção da
identidade étnica ..................................................................................................................... 20
1.1 O processo de reelaboração sociocultural na aldeia Mãe Jovina ....................................... 21
1.2 O grupo doméstico inaugurado por Mãe Jovina ................................................................ 22
1.3 Os passos iniciais: primeiras impressões e caracterização da aldeia .................................. 25
Capítulo 2. Mãe Jovina: curandeira e líder da comunidade política local ......................... 31
2.1 A volta da romaria em Juazeiro do Norte ........................................................................... 34
2.2 As curas de Jovina .............................................................................................................. 38
Capítulo 3. As rezadeiras de hoje e a continuidade da ação ritual e política das mulheres
da aldeia Mãe Jovina .............................................................................................................. 45
3.1 D. Cícera: A cura que vem do mato ................................................................................... 46
3.2 Dona Joana: fé e dom.......................................................................................................... 48
3.3 Tainara: o dom e potencial de liderança política ................................................................ 51
3.4 Sonhos, visões e suas implicações. ..................................................................................... 52
3.5 Doenças, rezas e curas ....................................................................................................... 55
Capítulo 4. Etnicidade, devoção e ritual: a festa de Padre Cícero ..................................... 58
4.1 Aspectos cosmológicos ...................................................................................................... 61
4.2 Fluxos culturais e fronteiras sociais ................................................................................... 66
Considerações finais ............................................................................................................... 68
Referências bibliográficas ...................................................................................................... 70
Bibliografia consultada .......................................................................................................... 72
ANEXO – Genealogia ............................................................................................................. 73
12
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva fazer um estudo etnográfico sobre os processos e práticas
rituais realizados pelo grupo doméstico Xukuru-Kariri que reside na aldeia Mãe Jovina,
localizado na zona rural de Taquarana – AL. Procuramos refletir sobre a relação que estes
rituais têm com os processos constitutivos da identidade coletiva. As discussões estão
especificamente voltadas para os rituais de cura, há décadas promovidos pelas irmãs e
lideranças político-religiosas do grupo – Dona Joana e Dona Cícera – outrora conferidos à sua
mãe, Dona Jovina, que é a razão para o nome da aldeia.
A ideia para esse trabalho surgiu durante a minha participação como aluna
pesquisadora no projeto de extensão: Levantamento de dados para caracterizar a ocupação
territorial das famílias Xukuru-Kariri da Fazenda Nóia em Taquarana-AL, realizado entre os
anos de 2014 e 2016 e ainda, no projeto de pesquisa: Identidade e território entre os XukuruKariri de Alagoas, no período de 2014 a 2015, ambos coordenados pela professora Drª.
Claudia Mura1.
Antes dessa experiência, o meu intuito era o de pesquisar as romarias indígenas. No
entanto, as idas a campo fizeram lançar meu olhar para algo que era recorrente: as curas
realizadas por Dona Joana. Me chamava atenção desde toda a performance ritual, como a
autoridade e legitimidade que ela detém diante dos moradores da aldeia e das regiões
vizinhas. No decorrer da pesquisa, então, os rituais de cura e a contribuição destes para o
processo de construção da identidade conquistaram a minha atenção.
Observei que muitas relações eram construídas e fortalecidas a partir dos rituais e que
seus conhecimentos estavam sendo ensinados a outros indígenas. Resolvi então, buscar
compreender a dimensão simbólica contida nesses rituais, o significado e o valor que os
indígenas lhes atribuíam neste momento de reivindicação identitária e territorial.
Antes do campo
O meu interesse pelos indígenas despertou quando ainda era criança. Vem de toda uma
trajetória escolar construída sobre a idealização de um ancestral estereotipado, descrito na
maioria das vezes como ingênuo, valente e ao mesmo tempo tão sedutor, tão cativante que era
1
Os projetos de extensão e pesquisa contaram ainda com a participação de Ítalo Dennis de Oliveira, Wemerson
Ferreira da Silva, Ludmila Pimentel Gonsálves da Silva e José Kleiton Vieira de Lima Ferreira.
13
impossível não ficar hipnotizada com essas referências. Pelo menos, era essa a imagem que
me passavam na escola, durante toda a educação básica e que influenciou a minha visão e a
construção da minha pessoa também. Via isso, nos filmes, a exemplo de Caramuru a invenção
do Brasil, nos livros, como O guarani, nos poemas, nas pinturas, na música, na educação
cristã/católica tão presente em minha vida. Enfim, em tudo.
O primeiro contato que tive com os indígenas foi numa mostra cultural da escola, na
oitava série. Sonhara com isso há muito tempo, tal qual foi a minha surpresa ao ver que
mesmo com seus cocares, trajes e pinturas tão características, eles falavam minha língua e não
sabiam nada de tupi-guarani – língua que naquela época, eu imaginava que todos os indígenas
falassem. Pelo contrário, em português claro davam uma aula sobre onde moravam, quantas
pessoas tinham na aldeia e que estudavam e trabalhavam como todo mundo. Mas, naquele
momento, só me interessava a foto com os ícones brasileiros. Infelizmente, não prestei muita
atenção naquele discurso e hoje percebo bem sua importância.
Já no ensino médio, uma das obras de literatura obrigatórias era Iracema de José de
Alencar. A obra narra a trajetória do amor entre Joaquim, o colonizador português e a índia
Tupinambá, a virgem dos lábios de mel. Cheia de simbolismos, a estória é uma alegoria sobre
o que nos impõem a acreditar como nascimento do Brasil. Mas, no meu ensino médio serviu
para que fizéssemos uma adaptação teatral. E esse foi o segundo contato com os indígenas
que tive. Nada direto, porém, naquele momento, muito significativo para mim que ao me
vestir de índia e pintar a área dos meus olhos de vermelho, me sentia a representação da
própria Iracema!
Como é possível observar, a minha percepção era a daquele índio romântico,
cristalizado no tempo, intocado na sua beleza e inocência, o índio que precisava de
“proteção”. Isso mudou drasticamente quando entrei na universidade e comecei a ter aulas de
certa disciplina chamada antropologia. A partir daí meu interesse pela questão indígena só
aumentou, no entanto, agora eu tinha um olhar que não era apenas senso comum e estava
ansiosa para explorar o universo que acabava de ser apresentado de forma diferente.
No terceiro período, comecei a pensar sobre qual seria a temática do meu trabalho de
conclusão de curso e, no decorrer da disciplina Antropologia 3 ministrada pela professora
Claudia Mura, tive a oportunidade de ler e discutir a produção de Victor Turner (1974), cuja
abordagem sobre os rituais despertou profundo interesse. Nesse período, minha mãe tinha se
tornado uma romeira e comecei, de forma amadora, a refletir teoricamente sobre essas
práticas rituais.
14
Nas discussões em sala, tudo se tornava mais claro, pois o conteúdo teórico dos textos
debatidos, iluminava os exemplos etnográficos das pesquisas realizadas no Nordeste. Além
disso, saber que a professora já havia pesquisado romarias indígenas, fez com que eu
percebesse que era possível unir temáticas que me eram tão caras e que estavam pulsando na
minha história pessoal, aguçando toda a minha curiosidade.
Quando acabou a disciplina, em uma conversa, ela me falou sobre o grupo de estudos
em Etnologia Indígena do Instituto de Ciências Sociais, do qual eu já tinha ouvido falar e
sonhava em participar. Perguntou-me se gostaria de integrar a equipe – mal pude conter
minha alegria e ansiedade. Logo em seguida em uma das nossas reuniões para análise dos
textos, me falou da demanda que surgira em uma das reuniões com lideranças Xukuru-Kariri
de Palmeira Índios, onde fora convidada a fazer um estudo sobre um território localizado no
município de Taquarana, reivindicado por três famílias extensas como área indígena perante a
FUNAI. Claudia apresentou-me, assim, a possibilidade de participar dessa empreitada e não
sabia que era a oportunidade que eu esperava há muito tempo.
Minha primeira intenção de pesquisa estava parcialmente definida, a experiência do
grupo me faria sentir a emoção de estar em campo e ainda traria todas as possibilidades para a
sua realização. Conforme o tempo foi passando, a frequência de nossas idas a campo e leituras
aumentou e o campo me apresentou uma prática sociocultural específica, sempre mencionada
de alguma forma nas nossas entrevistas e conversas: as curas realizadas por Dona Joana,
eventualmente Dona Cícera e, antes disso, por sua mãe Dona Jovina. Fiquei intrigada com o
sentido que aqueles processos rituais traziam para os indígenas e demais habitantes da região.
Partindo da concepção de focar os estudos sobre os rituais com base no contexto em que
ocorrem e observando os usos que se faz dos símbolos produzidos. Buscando compreender os
símbolos rituais em ação (TURNER, 2008). Observamos que os rituais, conferiam às irmãs
legitimidade moral e política diante de todos que as procuravam e achei, por bem, debruçar
meus estudos nessa temática.
Aspectos teórico-metodológicos e a pesquisa de campo
As teorias norteadoras desse trabalho encontram-se distribuídas ao longo do texto, mas
explicitamos aqui os principais autores e os conceitos que fundamentam a análise dos dados
etnográficos. Partimos das produções acerca da identidade e da fronteira étnica de Barth
(1969), especificamente a importante abordagem aos grupos étnicos como tipos
15
organizacionais. Nesse sentido, nos distanciamos de uma análise essencialista da identidade e
nos aproximamos de uma análise que foca a geração da mesma. Simultaneamente, as noções
de etnogênese e territorialização presentes em Oliveira (1998), são evocadas para melhor
elucidar as reflexões propostas. Entendendo que o grupo em questão, passa por um processo
de etnogênese e reelaboração cultural, no sentido de que passaram a se reagrupar em torno da
identidade étnica, agora enfatizada publicamente. Para a análise do ritual, que se apresenta
como mobilizador e agregador dos membros do grupo e que se torna um instrumento político
diante das ameaças que sofrem com relação ao território, utilizaremos as contribuições
teóricas de Turner (1974).
Finalmente, prosseguimos com o método de estudos proposto pela Escola de
Manchester. Sobretudo no tocante a análise do microssocial, com enfoque direcionado ao
comportamento dos indivíduos e as interações sociais em determinados contextos e situações.
Utilizamos uma abordagem metodológica fundamentada nos princípios de uma pesquisa de
natureza qualitativa, entendendo que:
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas
ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja,
ela trabalha com o universo de significados motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e
dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis
(MINAYO 2001, p. 22-23).
Assim, a análise considerou as especificidades e significados que os atores sociais
atribuem à sua realidade. Tal quais as análises propostas por Whyte (20052) que se relacionam
ainda, com algumas interpelações da Escola de Chicago, com bem exposto por Velho (2005),
e tentamos ir construindo o objeto de pesquisa com base na observação e na descrição das
trajetórias dos indivíduos. As trajetórias são as que mais prevalecem no texto, nós nos
valemos na maior parte do trabalho, das narrativas dos atores sociais para reconstituí-las.
Nesse caso, participar do cotidiano da aldeia foi imprescindível, ainda que de forma pontual,
como falaremos adiante.
Todos os dados para este trabalho foram produzidos de forma coletiva e as técnicas de
pesquisa utilizadas para essa obtenção foram: observação participante, entrevistas
semiestruturadas e diário de campo.
Como mencionado, a nossa pesquisa partiu do chamado dos indígenas, portanto,
tratava-se de uma situação bastante específica e nesse sentido, os interlocutores faziam
2
do ORIGINAL de 1943
16
questão de nos dar total disponibilidade. Assim, temos um trabalho de campo com “caráter
situacional e dialógico”, (OLIVEIRA, 2009, p.15). Embora houvesse a necessidade de
responder à urgência, as limitações encontradas para efetivação do projeto, como falta de
financiamento e envolvimento dos participantes nas atividades letivas da universidade, não
nos permitiu uma dedicação irrestrita à pesquisa.
Dessa forma, as idas a campo foram expressamente pontuais, ocorrendo em alguns
finais de semana entre maio e dezembro de 2014 na Aldeia Mãe Jovina. Voltamos,
posteriormente, no dia 15/02/2015, após termos concluído as observações. A equipe também
acompanhou os indígenas nas reivindicações feitas à FUNAI nos dias 11/12/2014 e
18/08/2015. Participamos ainda, em Palmeira dos Índios da Assembleia Xukuru-Kariri,
realizada entre os dias 09 e 11/10/ 2014.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudios e depois transcritas por todos, o que
nos proporcionou um pequeno acervo de sete entrevistas minuciosas e longas, com uma
média de 90 a 120 minutos cada.
Pessoalmente, não me foi possível participar das idas à FUNAI, no entanto, todas as
informações com relação ao processo e procedimentos adotados foram compartilhadas no
grupo e posteriormente, transformadas em documentos de um rico arquivo que pode ser
consultado por todos que se interessam pela temática e parte análoga de produção acadêmica3.
Foi também produzido o relatório final do projeto e apresentado à Pró-reitoria de Extensão,
bem como aos indígenas, os principais interessados.
Durante o campo, as narrativas extraídas das entrevistas e conversas, bem como a
vivência da observação participante, nos permitiram fazer uma reconstrução da trajetória
familiar do grupo doméstico, o que viabilizou a análise e reflexão sobre os processos políticos
e situações sócio-históricas que culminaram na reelaboração cultural que os indígenas
vivenciam atualmente.
Na aldeia Mãe Jovina, nossos principais interlocutores para as entrevistas foram Dona
Cícera, Dona Joana, Dona Tôta (Dona Josefa) e Seu Antônio (esposo de Dona Joana). Muito
importantes foram também as conversas que tivemos com Tainara (neta de Dona Joana), que
não se sentia muito a vontade em gravar suas falas, mas, fazia questão de nos acompanhar em
quase todos os lugares que passávamos na aldeia. Nas idas à Aldeia Fazenda Canto (na
3
Ver: SILVA, Wemerson Ferreira da. “Essa terra é complicada!”: Território e etnicidade entre os Xukuru-Kariri
de Taquarana (AL). Trabalho de conclusão de curso, UFAL, 2017.
17
retomada4), os principais interlocutores foram Gecinaldo, Raquel e Meire, lideranças XukuruKariri, e Rogério, esposo da Meire, sendo que várias vezes estes estiveram também presentes
em Taquarana e contribuíram com as discussões que lá foram feitas.
Nós tínhamos um calendário bem específico para as idas à campo e para as reuniões.
No entanto, era flexível de acordo com as necessidades dos indígenas e membros da equipe.
Antes de irmos à campo, sempre nos reuníamos e preparávamos um roteiro, que norteava de
forma aberta as nossas entrevistas. Era mais um guia para que pudéssemos aproveitar o tempo
com eles da melhor forma possível e não nos perdêssemos do objetivo central, que era o
estudo preliminar para caracterizar a ocupação desse território. No dia seguinte as reuniões,
quase sempre finais de semana, seguíamos viagem de Maceió à Taquarana e na aldeia, nosso
roteiro era sempre complementado com vastas e diversas informações. Assim, o questionário
semi-estruturado ia se moldando conforme os assuntos abordados. Às vezes, nós nem
precisávamos perguntar tal informação, pois os indígenas simplesmente tinham demandas
diferentes para nos apresentar.
Grande parte das entrevistas foi realizada na sala de Dona Cícera, que era sempre
muito movimentada. Em várias delas, o áudio fica confuso em alguns minutos, por conta das
conversas paralelas entre os parentes, crianças e até ruído proferido por alguns animais que
vez por outra entravam na casa. No entanto, toda essa “movimentação” só fez com que a
nossa experiência se tornasse mais rica, devido à multiplicidade de opiniões e posições
apresentadas. Outra parte das entrevistas foi realizada no terreiro de Dona Cícera ou próximo
à casinha de Pe. Cícero. Na maioria das vezes, a equipe se dividia entre os interlocutores.
Wemerson e Ítalo ficavam com Dona Cícera, e Ludmila e eu com Dona Joana. Enquanto
Claudia dividia seu tempo entre todos. Devido a essa dinâmica que adotamos, tínhamos a
possibilidade de entrevistar várias pessoas ao mesmo tempo e a partir disso, podemos
observar diferentes situações. Assim, eu tive mais proximidade com Dona Joana e Tainara
que estava quase sempre presente.
4
Os indígenas sempre se referem a essa área que eles ocupam em Palmeira dos índios como retomada, por se
tratar de um território indígena que teve seu reconhecimento pleiteado junto aos órgãos federais. Diante disso,
nas vezes que fomos à Fazenda Canto, percebemos que os moradores vizinhos não índios, têm certo
comportamento de aversão a eles. Foram muitos os relatos das situações de ameaças e constrangimentos que
passam na região. Nossa presença, também não era muito bem vista pelos moradores não índios que nos
olhavam com desconfiança e ao pedirmos informações respondiam sempre de forma arredia e monossilábica.
Essa situação de mal-estar também se aplica aos indígenas de Taquarana, sobretudo com o fazendeiro Elias e sua
filha que travam uma luta judicial pela posse do território da aldeia.
18
Estrutura do trabalho
O trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro está voltado para uma breve
contextualização histórica, destacando os movimentos sócio-políticos que impulsionaram a
constituição do grupo Xukuru-Kariri, bem como foram determinantes para seu
estabelecimento na região de Palmeiras dos Índios. O capítulo aborda também, o processo de
reelaboração cultural vivenciado pelo grupo doméstico de Taquarana e os aspectos que se
comportaram como um “gatilho” para seu início, especialmente o conflito com um fazendeiro
local que envolve o território reivindicado pelos indígenas. Finalmente e de forma sucinta,
descrevemos ainda a entrada em campo e algumas características espaciais da aldeia.
O segundo capítulo concentra a atenção na figura central para os indígenas de
Taquarana: Mãe Jovina. Nessa parte do texto, abordaremos sua trajetória desde a chegada na
então Fazenda Nóia aos quatorze anos de idade, os motivos que a levaram a estabelecer-se na
região e sua atuação como curandeira, um dos enfoques impulsionadores dessa análise. O
capítulo trata ainda das curas realizadas pela indígena e da construção de sua reputação moral,
baseada no prestígio adquirido através da atribuição de especiais poderes de cura.
Escolhemos o terceiro capítulo para apresentar a atuação das outras especialistas rituais
da Aldeia Mãe Jovina, Dona Joana, Dona Cícera e Tainara. Nele tratamos da descoberta do
dom delas, da sua atuação política e moral na aldeia e como as curas são importantes
ferramentas para a coesão do grupo e a construção e manutenção dos vínculos estabelecidos
socialmente. Ressaltamos também a importância dos sonhos na formação espiritual das
rezadeiras.
No quarto e último capítulo abordamos a festa de Pe. Cícero, importante ritual que
atribui ênfase à identidade indígena. Expomos também alguns aspectos cosmológicos,
explicitando como se dá a sua composição de acordo com a interpretação dos indígenas sobre
o local. E ainda, apresentamos uma reflexão sobre os fluxos culturais originários de diferentes
tradições e que atravessam a Aldeia Mãe Jovina.
Ao longo do texto o leitor irá perceber a utilização de algumas categorias nativas.
Categorias que foram muito marcadas pelos nossos principais interlocutores, como Dona
Cícera, Dona Joana, Tainara e Seu Antônio. A sua compreensão, de acordo com o contexto
em que são utilizadas, tornou-se fundamental para o tema deste trabalho. Essas categorias
serão abordadas e descritas ao longo do texto, no entanto, decidimos explicitar algumas já de
antemão: Rezadeira, benzedeira, curandeira, dom, parentes.
19
Percebemos que rezadeira, benzedeira e curandeira, estão relacionadas ao ato de curar
as pessoas. No entanto, existem o que parecem ser hierarquias, por exemplo: o termo
curandeira é frequentemente atribuído a Mãe Jovina. Nossos interlocutores se rementem a
essa categoria de forma a atribuir-lhe um dom inquestionável, dado pelo divino. Já a categoria
benzedeira ou mandar benzer, relaciona-se mais comumente ao ato de passar o ramo, isto é,
uma das técnicas utilizadas para obter a cura. Já rezadeira seria uma pessoa que tem
habilidades semelhantes à curandeira. No entanto, existem algumas doenças5 que não podem
ser curadas pelas rezadeiras, à exemplo das manifestações de loucura6. Nesse caso, a
especialista agiria, apenas de forma paliativa.
Dom é usado para definir as capacidades de cura dadas aos escolhidos pelas entidades.
No caso de Mãe Jovina, a entidade sobrenatural responsável pelo seu dom é descrita como um
mestre indígena. Já as suas filhas, especialmente Dona Joana, descrevem que seu dom foi
dado por Deus. Essas capacidades ou habilidades vão se desenvolvendo com o tempo, desde
que o escolhido cumpra suas obrigações seguindo os preceitos morais estabelecidos.
Finalmente, quando os indígenas se referem aos parentes, estão se valendo dessa
categoria para descrever outros indígenas e de forma mais específica os que pertencem ao
mesmo grupo étnico. Como aponta Reis (2015, p. 11) “A expressão “parente” é comumente
usada pelos povos indígenas, no Brasil, para referirem-se uns aos outros, numa compreensão
que extrapola a consanguinidade”. Os parentes são acionados quando existem conflitos
relacionados ao território e a etnicidade, são formadas alianças e os conflitos internos passam
a ter menor importância.
***
Uma advertência ao leitor acerca dos grifos empregados neste trabalho: o itálico é utilizado
para as categorias nativas e para as falas dos interlocutores; as aspas são empregadas para as
citações e os conceitos dos autores.
5
Por doença, entendemos o sentido atribuído pelos interlocutores, no caso, distúrbios de ordem espiritual que se
manifestam fisicamente.
6
A pessoa acometida seria alvo de alguma entidade sobrenatural maligna.
20
Capítulo 1. O grupo indígena Xukuru-Kariri: processos históricos e a construção da
identidade étnica
Martins (1998, p.18) nos informa que os relatos históricos nos remetem à presença de
aldeamentos indígenas na região atualmente denominada Palmeira dos Índios, desde o século
XVIII. As menções a aldeamentos localizados onde atualmente estão os Xukuru-Kariri, são
encontradas em autores do século XIX. Os relatos descrevem que um missionário teria
recebido uma doação, com intuito de construir uma capela no local. O missionário de origem
portuguesa era o Frei Domingos de São José e seu objetivo era catequizar os índios que ali
viviam. As terras que conformavam uma dimensão de meia légua, foram doadas no ano de
1773, três anos após sua chegada na região, por Dona Maria Pereira Gonçalves, à época
possuidora da Sesmaria de Burgos. A capela foi construída em honra ao Senhor Bom Jesus da
Boa Morte. Depois a padroeira passou a ser Nossa Senhora do Amparo com a mudança do
local da matriz.
Conforme Oliveira (1998), os índios do Nordeste brasileiro passaram por dois grandes
processos de territorialização que contribuíram para a formação das identidades sociais como
as conhecemos hoje. No caso dos Xukuru-Kariri, o primeiro corresponde ao período da
construção da capela citada acima e está associado às missões religiosas nos séculos XVII e
XVIII. O segundo ocorreu a partir do início do século passado, quando os grupos indígenas
são colocados sob a tutela dos órgãos indigenistas oficiais:
As populações que hoje habitam o Nordeste provêm das culturas autóctones que
foram envolvidas em dois processos de territorialização com características bem
distintas: um verificado na segunda metade do XVII e nas primeiras décadas do
século XVIII, associado às missões religiosas; o outro ocorrido neste século e
articulado com a agência indigenista oficial (OLIVEIRA, 1998, p.56).
Desse modo observamos que os indígenas que residiam em Palmeira dos Índios
passaram pelo primeiro processo de territorialização nesse espaço de tempo, quando
começaram a ser aldeados na região e pelo segundo quando da criação da primeira aldeia
Xukuru-Kariri, a Aldeia Fazenda Canto em 1952, já no século XX, como descreve Silva:
Entre os Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios esses dois processos podem ser
identificados a partir de dois acontecimentos: o primeiro consiste na fundação do
Aldeamento de Palmeira dos Índios no século XVIII; já o segundo, na criação da
Aldeia Fazenda Canto, a primeira aldeia Xukuru-Kariri no século XX, instituída em
1952 através de iniciativas indígenas, “figuras de mediação”17 e da ação do órgão
indigenista oficial (na época, o SPI) (SILVA, 2016, p.27).
21
Importante ressaltar, que antes do segundo processo territorialização, os indígenas
foram obrigados a se deslocar do próprio território em virtude da extinção de seu aldeamento
e das consequentes perseguições sofridas. Salienta-se, contudo, que o grupo doméstico
protagonista neste trabalho, manteve vínculos de parentesco e rituais com os Xukuru-Kariri
que permaneceram em Palmeira dos Índios, como explicitaremos melhor no capítulo a seguir.
Mãe Jovina, migrou de Palmeira para Taquarana entre as décadas de 20 e 30, visto que sua
certidão de casamento, data do ano de 1939 e continuou a se relacionar com os parentes.
Conforme Silva (2016):
[...] os vínculos rituais e de parentesco que os indígenas que estavam em Taquarana
mantiveram ao longo do século XX com os da Aldeia Fazenda Canto, assumiram
enorme importância no processo de reivindicação que eles estão realizando agora
(2016, p.28).
A relação que mantiveram com eles mostrou-se fundamental diante do conflito de
terra que vivenciam hoje. Foi o subsídio dado pelos parentes – quando acionados por eles –
que permitiu o fortalecimento da luta, impulsionando o resgate da memória com base nas
relações de parentesco, sempre exaltada pelos atores.
1.1 O processo de reelaboração sociocultural na aldeia Mãe Jovina
O grupo em foco é uma parcela de indígenas Xucuru-Kariri que ocupa um território de
aproximadamente 3 ha, localizado, como mencionado, na zona rural de Taquarana – AL.
Antes do início do processo de reelaboração cultural, o local era conhecido por Fazenda Nóia,
em referência a Manuel Nóia, fazendeiro que detinha a posse da terra. Na aldeia moram cerca
de 40 pessoas. Atualmente, estas vivenciam um processo de reivindicação de suas terras e
reconhecimento étnico perante o Estado. No que se refere ao território:
[...] a possibilidade de perda do mesmo, em razão de conflitos com um latifundiário
local, levou as famílias a reivindicarem sua demarcação como Terra Indígena (TI) à
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), provocando um processo de reconstrução das
fronteiras étnicas e de reelaboração sociocultural (SILVA 2017, p 14).
Diante da situação, os indígenas vêm aprendendo a se organizar politicamente em
defesa de seu território, orientados por outros pertencentes ao mesmo grupo Xukuru-Kariri
das aldeias de Palmeira dos Índios. A constante ameaça da iminente perda do território, fez
22
com que o grupo doméstico acionasse os parentes de Palmeira dos Índios para auxiliá-los no
decorrer das reivindicações. A necessidade de se manter no território em que nasceram e se
criaram, deu origem à demanda de se constituírem como uma coletividade que se diferencia
etnicamente dos moradores não índios da região, levando-os assim, a se afirmarem enquanto o
que Barth (1998) chamou de “tipo organizacional”. Como assinala Almeida no caso dos
Krenyê:
Começaram, então, a se construir enquanto coletivo para se afirmar como unidade,
ou como um “tipo organizacional”, (BARTH, 1998). Assim, o processo de luta por
demarcação vai se constituindo em paralelo ao processo de construção da identidade
Krenyê (2014, p.4).
Até então eles viviam sem que houvesse necessidade de cobrar sua identidade
diferenciada e evidenciá-la publicamente. Dona Cícera ressalta que em um dado momento,
mesmo com toda dificuldade financeira que passavam, eles nem lembravam que eram índios,
ainda que mantivessem os vínculos com seus parentes indígenas. A exemplo, a etnicidade de
Mãe Jovina, enquanto especialista ritual indígena, só passa a ser evocada a partir do conflito
da terra.
Oliveira define o processo de territorialização como um movimento que impulsiona um
objeto político-administrativo a se transformar em uma coletividade organizada, “[...]
formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de
representação e reestruturando as suas formas culturais” (1998, p.56). Nesse sentido, o grupo
em questão, vive um processo de territorialização desencadeado pelo conflito pela terra.
Durante esse processo são evidenciados os movimentos de reelaboração sociocultural
encontrados, voltados para constituição, manutenção e fortalecimento da identidade étnica.
Observamos que parte importante desses movimentos estão contidos nos rituais.
Para Barth (2000) os processos rituais são extremamente relevantes para os processos
de organização dos grupos étnicos, como pudemos observar no caso em foco. Eles
oportunizam a agregação e a solidificação do sentimento de pertença, bem como produzem e
elevam os sinais diacríticos que permitem o reconhecimento das diferenças do grupo.
1.2 O grupo doméstico inaugurado por Mãe Jovina
O grupo doméstico é inaugurado por Mãe Jovina. Ela foi trazida pelo irmão José
Firmino de Palmeiras dos Índios, ainda na adolescência, como descreveremos melhor no
23
segundo capítulo, em busca de trabalho na então Fazenda Nóia. Ao chegar no local, Antônio
Camilo, um dos herdeiros da fazenda, sobrinho de Manoel Nóia, agradou-se de Jovina e
casou-se com ela. Eles se estabeleceram na região e moravam na parte do território,
denominada grota.
Na grota nasceram e se criaram quase todos os filhos de Dona Jovina. Era lá também
que ficava seu salão de curas. Dona Cícera e Dona Joana relatam que a vida lá era muito
difícil, que não estudavam e nem tinham acesso às mudanças tecnológicas. Após a morte de
Jovina e Antônio Camilo em 1990, que para os indígenas representavam autoridades morais e
políticas na região, iniciou-se um processo de vendas e trocas das terras deixadas por Manoel
Nóia. Luís Camilo, à revelia da família vendeu grande parte das posses de terra para um
fazendeiro local chamado Elias. Sendo esse um dos principais fatores que levou o grupo
doméstico a se mudar para na chã, parte de cima do terreno.
Com o passar do tempo, houve muitas vendas e trocas no território, estas atribuídas a
ausência de Jovina e Antônio, entendidos como responsáveis por manter a coesão na família,
fazendo com que restassem apenas os pouco mais de 3ha onde moram atualmente. Já na chã,
uma situação foi definitiva para que os indígenas começassem seu processo de reivindicação
territorial. Em abril de 2013, estes foram surpreendidos por um oficial de justiça de posse de
uma intimação judicial. O documento referia-se à ação de usucapião proposta por Adriana,
filha de Elias citado anteriormente, em face da posse de parcela do território da Fazenda Nóia,
que teria sido comprado por seu pai.
O fato é que os indígenas interpretaram tanto a visita do oficial de justiça, como o
processo por ele informado, como uma tentativa clara de usurpação de suas terras por parte de
Elias. Diante da situação, recorreram aos parentes de Palmeira dos Índios para que os
ajudassem na ação. Estes, por sua vez, os orientaram a reivindicar a área como território
indígena junto aos órgãos competentes, ao passo que também os auxiliaram (auxiliam)
durante a reivindicação. Assim, começaram os processos de formação política que
observamos nas oficinas (das quais falaremos adiante) e ainda, passaram a ser cada vez mais
ressaltadas as fronteiras étnicas. Com base nessa situação, os indígenas resolveram mudar o
nome de seu território para Aldeia Mãe Jovina, em referência à primeira indígena a se
estabelecer por ali, o que nos dá o indicativo da ressignificação do território com base na
memória e no movimento de reconhecimento da identidade étnica. Não por acaso, Jovina é
sempre evocada como a mãe, como descreve Silva (2016, p.98), ela não é tão somente mãe
dos indígenas, mas, da aldeia. A mudança do nome da aldeia é refletida como um marcador
histórico-cultural. A partir desse momento, as famílias extensas da então Fazenda Nóia,
24
passam agora a se identificar publicamente como Xukuru-Kariri da Aldeia Mãe Jovina,
elevando o título a sinal diacrítico.
Mapa 1 – Alagoas – Delimitação do espaço territorial entre Palmeira dos Índios e
Taquarana
Fonte: IBGE
25
Mapa 2 – De Palmeira dos Índios à Taquarana
Fonte: Google maps – Distância de aproximadamente 33 km.
1.3 Os passos iniciais: primeiras impressões e caracterização da aldeia
A nossa primeira ida à campo ocorreu em uma das oficinas organizadas pelos indígenas
Xukuru- Kariri de Palmeira dos Índios. Já adentrei em campo prestando atenção nos aspectos
religiosos, pensando em produzir dados para o meu TCC. Foi possível observar já de início, o
empenho do grupo na afirmação de uma identidade coletiva que, nesse momento, era possível
perceber pela formação política em curso.
Na primeira oficina, dividiram todas as pessoas presentes em grupos de debate, nesses
círculos as discussões versaram sobre o porquê de pertencerem ao grupo étnico, sobre suas
raízes e trajetórias indígenas e sobre como estão amparados pela lei, com relação ao direito à
terra e ao bem viver, dizia Gecinaldo, uma das lideranças de Palmeiras dos índios, e outros
indígenas de lá, altamente politizados. No final das discussões cada grupo elaborou cartazes
com dizeres que remetiam à unidade do grupo e à luta pela terra. Houve também momentos
de grandes rodas de conversas, onde quem se dispunha, podia contar sua história e seus
anseios. Foi o caso de Dona Cícera que, já no primeiro dia, mesmo com toda sua timidez, nos
mostrava sua inquestionável autoridade diante de todos. A foto abaixo ilustra bem o
envolvimento dos indígenas no dia:
26
Imagem 1 – Apresentação de cartazes nas oficinas
Foto: Gecinaldo. Ao centro Dona Joana
Como já mencionamos, os indígenas que residem na atualmente chamada Aldeia Mãe
Jovina fazem parte de um grupo doméstico, composto por três famílias extensas, lideradas
pelas três filhas de Mãe Jovina: Dona Cícera, Dona Joana e Dona Josefa. As casas na aldeia
estão
dispostas
de
forma
que
cada
família
correspondente:conforme ilustram os croquis abaixo:
ocupe
e
cultive
em
seu
lugar
27
Croqui 1 – Disposição das casas na aldeia
Mapa por: Juarez Paiva – Técnico em Agrimensura – 2013. Desenhos no mapa: Claudia Mura e Wemerson
Ferreira da Silva.
28
Croqui 2 - Divisão do território e roças existentes
Mapa por: Juarez Paiva – Técnico em Agrimensura – 2013. Desenhos no mapa:Claudia Mura e Wemerson
Ferreira da Silva.
29
Legenda Croqui 2
Divisão do território
1 – Parte correspondente à Dona Cícera;
2 – Parte correspondente à Dona Tôta;
3 – Parte correspondente à Dona Joana;
Roças
1 – Roça de Dona Cícera. Nela cultiva-se: batata, quiabo, coco e couve;
2 – Roça na parte do terreno pertencente à Dona Tôta, mas que é mantida por Dona Cícera e seu
esposo, Cícero. Nela cultiva-se batata;
3 – Roça de Dona Joana. Nela cultiva-se: quiabo e batata;
4 – Roça na parte do terreno pertencente à Dona Tôta, mas que é mantida por Dona Cícera e seu
esposo, Cícero. Nela cultiva-se: macaxeira, fava e milho;
5 – Roça de Dona Joana. Nela cultiva-se: macaxeira e fava;
Legenda: Wemerson Ferreira da Silva (2017)
30
Croqui 3 - Transformações ocorridas no território
Croqui: Wemerson Ferreira da Silva e Ítalo Dennis de Oliveira
31
Capítulo 2. Mãe Jovina: curandeira e líder da comunidade política local
Mãe Jovina nem sempre foi a curandeira famosa que todos mencionam. Como
apontam nossos interlocutores, ela saiu de Palmeira dos índios, aos quatorze anos de idade,
entre as décadas de 20 e 30, em busca de trabalho na Fazenda Nóia. Foi trazida por seu irmão
José Firmino que, após a morte de sua mãe, ficou responsável por sua criação:
Foi... lá num tinha ganho... Agora tá bom demais agora tem comer, tá bom demais
lá num tinha ganho, ai tio Zé Firmino era terra do mineiro ele desceu com mamãe
ainda com quatorze anos, a mãe da minha mãe morreu, ele que tomou de conta pra
criar, aí quando chegou com a idade de quatorze anos, pequena, nova, assim ela
conta que eu num vi né, ficava se escondendo na saia da veia Luzia que era mulher
do Zé Firmino (Dona Cícera, 2014, Taquarana - AL).
Logo depois de chegar ao lugar, casou-se no ano de 1939, contra a vontade de seu
irmão, com o senhor Antônio Camilo não índio e uns dos herdeiros da fazenda. Vale ressaltar
que os herdeiros não eram filhos do fazendeiro Manoel Nóia, pois conforme os argumentos
dos interlocutores, ele não teria tido nenhum filho. Segundo os relatos de Dona Cícera, uma
das filhas de Mãe Jovina, o seu Antônio Camilo era casado, mas, separou-se da esposa ao
descobrir uma traição. Diante da situação, agradou-se de Jovina e a carregou:
[...] quando mamãe tava com a idade de quatorze anos, a mulher dele botou uma
florzinha na cabeça dele né? Aí ele se abusou e deixou ela, deixou a mulher. Aí ele
foi casou, carregou a mamãe sem tio Zé Firmino querer. Ele carregou a mamãe.
Ai ele viveu com a mamãe de quatorze até os cinquenta anos (Dona Cícera, 2014,
Taquarana-AL).
Após o casamento, eles se estabeleceram no lugar denominado pelos indígenas de
grota, uma parte da fazenda que consiste numa área de declive. Permaneceram casados e
morando na grota por cerca de quarenta anos até a morte de Mãe Jovina. Foi na grota que
nasceram todos os seus filhos e de onde os relatos da existência da grande curandeira
começaram a se espalhar.
32
Imagem 2 – Mãe Jovina e Antônio Camilo
Foto: fornecida por D. Cícera
Mesmo tendo Jovina saído de sua terra natal, casado e constituído sua própria família,
é relevante ressaltar que o vínculo com seus parentes indígenas nunca foi extinto, tendo
mantido as relações de cooperação e participado dos rituais nas aldeias da área indígena de
Palmeira dos Índios. Ela continuou participando de rituais como o Toré e Ouricuri e,
inclusive, levava seus filhos para que participassem e tomassem a benção de seus tios. Esses
são importantes rituais que têm profunda relação com a identidade étnica.
Durante o segundo processo territorialização, pelo qual passaram os índios do
Nordeste (PACHECO, 1998), o Toré que já existia, tornou-se um sinal diacrítico desses
grupos, uma forma de identifica-los e reconhecê-los como índios pelos órgãos oficiais primeiro o SPI e depois a FUNAI. No entanto, cada etnia criou sua própria versão do ritual e,
nas últimas décadas, passou a ser a necessária expressão cultural para a afirmação da
etinicidade, sinal diacrítico nos processos de reconhecimento étnico e territorial (CUNHA,
2008).
33
O Ouricuri é um ritual sagrado, caracterizado por um processo de reclusão dos
indígenas. Existem alguns preceitos morais que devem ser seguidos para que se tenha entrada
no ritual e não aconteça nenhuma punição aos indígenas que, por ventura, faltem com o
respeito a seus preceitos. Mesmo que não estejam participando pessoalmente, o período em
que ocorre o ritual deve ser observado por todos como sagrado. Não adentramos às práticas
do Ouricuri, por não ser permitido o ingresso aos não índios e por respeito aos seus segredos.
Mas, para os objetivos deste trabalho é importante ressaltar que a participação dos indígenas
nesses importantes rituais viabiliza a manutenção da ligação entre eles, mesmo que quem
participa não necessariamente mora na TI. A ligação proporcionada pelos processos rituais é
capaz de excluir os conflitos, unindo os atores sociais com base na cooperação. Prevalece
nesse caso, o interesse comum, isto é, o benefício almejado alcançado através do ritual, mais
especificamente através dos rituais de cura.
Em quase todas as entrevistas realizadas, os relatos sobre essas visitas são ricos em
detalhes, com descrições sensíveis dos lugares e acontecimentos, percebendo-se claramente as
marcas na infância e na memória de Dona Cícera, Dona Joana e Dona Josefa, como podemos
observar nessa conversa que tivemos com Dona Cícera:
Claudia – moravam todos na Fazenda Canto?
Os irmãos da minha mãe morava tudo na Fazenda Canto.
[...]
Claudia – Da família dela, como se chamavam?
Família que ela dizia, ói, era ela quem dizia a nós, né?! Chega lá dê benção que seu
tio. Tio Alfredo, nós dava a benção. Tinha o Miguel, tio Miguel, que ele dizia: Tá
vendo essa aqui? Dê benção que ele é seu tio, ele é meu primo legítimo. Tio Miguel,
Honório, o tio Miguel, o tio Alfredo, só que eu conheci assim mesmo, né?! E aí os
outros pronto, eu não cheguei a conhecer mais. E o Mané...(Dona Cícera, 2014,
Taquarana-AL).
Dentre esses parentes a que Dona Cícera se refere, estão importantes lideranças
Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios com quem mantém grande colaboração, tanto no
processo de reivindicação da terra e formação política quanto no processo de construção da
identidade.
Observamos que o grupo Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios, como uma
comunidade política étnica (WEBER, 2004) é composta de unidades sociais, especialmente
famílias que têm sido fundamentais no processo de reelaboração cultural que vêm passando,
como será evidenciado durante todo o texto. Destacamos que “comunidade política” se refere
ao grupo étnico e comunidade política local7 refere-se ao grupo doméstico composto pelas
7
Nesse caso, nos referimos as três famílias extensas que compõem o grupo doméstico analisado.
34
famílias extensas e que, geralmente, vivem próximas e têm uma cooperação cotidiana. Essas
comunidades atuam em situações diferentes, o grupo étnico é sempre acionado na relação
com o estado e os não índios e a comunidade política local atua diante das relações com
outras unidades sociais dentro do grupo.
As análises propostas por Mura (2013) destacam que, no caso dos Pankararu em
Pernambuco, a principal unidade sociológica de referência é o grupo doméstico. Ele também é
a forma mais importante de articular relações e orientar condutas. Explicita ainda, que no caso
dos Pankararu, os indígenas fazem referência aos troncos. O tronco é formado por diversas
famílias extensas que mantém uma relação mútua de cooperação econômica e ritual. Da
aliança entre os troncos emana a força política para operar diante das situações de ameaça.
Observamos que ocorre de forma semelhante no contexto aqui focado. Os troncos compostos
pelas famílias de Palmeira dos Índios, das quais descendem o grupo analisado, funcionam
como uma base de força política, são moralmente reconhecidos pelas três famílias extensas
como tal.
O grupo doméstico em Taquarana está em constantes movimentos de reorganização e
como veremos adiante, tem suas próprias lideranças e forma de gerenciar seus saberes. Mas,
partilham de uma memória comum com relação à sua história que não foi apagada com a
migração de Jovina, mas, acrescida de novas experiências.
Como vimos, os vínculos entre os parentes de Palmeira dos Índios e Taquarana se
mantiveram especialmente pela participação nos rituais. O que contribuiu ao longo do tempo
para o sentimento de pertencimento entre os membros do grupo étnico. No momento de
ameaça eminente de perda do território, os parentes foram acionados, assim, as famílias
formaram uma aliança política em defesa da identidade do grupo étnico. O conflito
vivenciado pelo grupo doméstico, nesse sentido, se configura como uma ameaça à identidade
reivindicada, de uma forma geral. Na aldeia Mãe Jovina, analisamos que esse sentimento de
pertencimento é fomentado com base nos rituais de cura e na festa de Pe. Cícero.
2.1 A volta da romaria em Juazeiro do Norte
Todos os indígenas que entrevistamos, em especial Dona Cícera e Dona Joana, traçam
narrativas sobre Mãe Jovina ser devota de Pe. Cícero, assim como suas filhas são até hoje.
Anualmente seguia em romaria para Juazeiro do Norte. Em uma dessas viagens, Dona Joana e
Dona Cícera relataram que durante uma visita ao Santo Sepulcro, teve um mal súbito e
35
desmaiou. Importante ressaltar que o santo sepulcro é um lugar tido como sagrado pelos
peregrinos. Para alcança-lo é necessário trilhar um caminho tortuoso em penitência, até
chegar ao alto da chamada Colina do Horto. Lá são pagas diversas promessas.
Ao acordar não falava, não ouvia e não se alimentava mais, ficando imersa nessa
espécie de transe espiritual, por quinze dias, absolutamente incomunicável. Pode-se dizer que
este período de incomunicabilidade corresponde ao que Turner (1974, 2005) chamou de
liminaridade. Segundo o autor, que retoma e aprofunda a teoria de Van-Genep (1909), os
rituais são responsáveis por manifestar simbologias e representações que podem servir de
substratos para aspectos cotidianos da vida em sociedade, que podem ainda estar ligados à
cosmogonia. Para ele parte do ritual acontece separado da vida cotidiana e ordinária dos
atores sociais. Sendo esse o estado liminar, que não se configura nem aqui nem lá, está fora
do tempo e espaço, é uma espécie de limbo social:
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são
necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou
escapam à rede de classificação que normalmente determina a localização de estados
e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá;
estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes,
convenções e cerimonial (TURNER, 1974, p.117).
Assim, os indivíduos passam por um momento de separação da sociedade,
caracterizado pela ausência de status e posteriormente ocorre a reagregação. A influência
simbólica apreendida durante o estado liminar, ressignifica as qualidades e também o status
da pessoa ou grupo que o vivenciam. No caso de Mãe Jovina, ela foi separada de sua vida
cotidiana quando foi em romaria para Juazeiro do Norte. Esse foi o primeiro momento de
liminaridade, seguido pelos quinze dias sem se comunicar com os demais. Após esse período,
desmaiou novamente e, ao acordar, o mestre que falava através dela, explicou que aquilo era
para livrar a todos e que daquele momento em diante, ela seria uma curandeira, como
explicitado no trecho da entrevista com Dona Cícera:
[...] nós andando para Juazeiro, certo dia quando chegamos do Juazeiro ela chegou
doente. E o velho (Antônio Camilo) perguntava: “o que é que tu tens Jovina?” e ela
não disse nada. Então, de cabeça baixa ela ficou e o povo começou a boatar – Jovina
está doida, Jovina está doida. Ela ficou surda, não comia, não bebia […] ela não
falava com ninguém.
[...] deu quinze dias, aí ela deu a palavra. Aí o mestre falou que o que estava com ela
era pra livrar vocês de tudo. Então, meu pai disse que ía levar pra rezar ela. O mestre
que estava nela responde: se vocês levarem ela vocês vão ficar sem ela.
[...] A partir de hoje ela vai ser curandeira e vai ter o dia pra curar, o que tava nela
disse.
36
Claudia: Mas, isso aconteceu depois da volta de Juazeiro?
Dona Cicera: Foi, uma semana depois. Deu logo lá e quando ela chegou, já chegou
meio abestalhada e ficou assim quinze dias. E o mestre disse: Jovina vai curar terça,
quinta e sábado e se você chega ao menos perto dela o seu pescoço eu arranco. Aí o
velho cismou, como vou ter mulher e não vou chegar perto dela. Então, o mestre
disse: chegue perto dela que você leva um sarrabuio³. E como é teu nome? Aí ele
disse: eu me chamo Aruba o que você quer, sou Aruba e venho tirar de tudo.
Depois ela ficou curando e ninguém acreditou (2014, Taquarana-AL).
A agregação após o período liminar conferiu à Mãe Jovina o status de curandeira.
Dona Cícera descreve que sua mãe ficou curando e ninguém acreditou, no sentido de tamanha
admiração com o fato inesperado, ninguém acreditou tamanha a grandiosidade do fenômeno
ocorrido. Essa é uma forma de dizer que todos ficaram maravilhados com o dom recebido
pela então recente curandeira, o que lhe trouxe grande prestígio. E assim o foi, por vinte
anos, até o dia de sua morte. É importante ressaltar ainda, que o termo curandeira, em geral,
só foi utilizado pelos interlocutores para se referir a Mãe Jovina. No caso de todas as
especialistas rituais citadas nesse trabalho, observamos que os rituais de cura são percebidos
por elas e por todos que as procuram, como responsáveis por sanar momentos de crises.
O fato de Mãe Jovina poder livrar a todos exemplifica bem essa reflexão, livrar a
todos, pode significar salvar a todos e assim, o ato de ser salvo se dá por meio da cura
espiritual. No caso, todos que são acometidos por determinadas perturbações, doenças ou
problemas financeiros, procuram as especialistas rituais para serem livres de seus
desassossegos. Tomando as elaborações teóricas de Turner (1974) o ritual assume a função de
trazer a pessoa acometida por desequilíbrios entendidos como espirituais de volta à
normalidade.
Nesse caso, os desequilíbrios são entendidos como qualquer situação
desagradável que retire a pessoa do curso rotineiro de sua vida. À normalidade atribui-se o
sentido de estabilidade espiritual que se manifesta como saúde física, psicológica e por vezes
social. Abaixo segue o mapa do trajeto das romarias à Juazeiro do Norte:
37
Mapa 3 – Brasil - Espaço territorial percorrido entre Ceará e Alagoas
Fonte: IBGE – O quadrado vermelho indica o espaço territorial percorrido entre Alagoas e
Ceará, nas romarias à Juazeiro do Norte.
Mapa 4 – De Alagoas à Ceará
Fonte: Google maps – Distância aproximada de 548 Km
38
2.2 As curas de Jovina
Certo dia, após os acontecimentos descritos acima, chegou um visitante na casa de
Dona Jovina com uma doença nas pernas e não havia nada que resolvesse. A curandeira
sentiu que podia ajuda-lo. Passou o ramo8 e três dias depois o rapaz estava bem. Dali em
diante o boato se espalhou9
Muitas pessoas de vários lugares nas proximidades de Taquarana, índios e não índios,
ricos e pobres começaram a procurar por Dona Jovina. Conforme relatos de suas filhas e
genros, bem como de outros indígenas das aldeias de Palmeira dos Índios, formavam-se
enormes caravanas em busca de suas curas e orientações. Seus ensinamentos eram
extremamente valorizados e são enaltecidos até os dias atuais por seus genros, filhos e todos
que de alguma forma a conheceram ou simplesmente ouviram falar de suas curas.
Várias relações de cooperação foram surgindo com base nas curas e nos partos que
posteriormente passaram a ser realizados por Mãe Jovina. Na grota foi construído um salão,
um lugar onde ela pudesse atender as pessoas que a procuravam, durante todo o dia. O salão
de curas é sempre muito citado por suas filhas, especialmente por Dona Cícera. Sempre
descrito como um espaço muito simples, mas que acomodava muita gente. Nele continha
apenas uma mesa, onde eram realizadas as curas, postas as orações e os ramos10 utilizados por
Mãe Jovina.
A família de Mãe Jovina era muito humilde, mas ela não cobrava financeiramente por
seus serviços. No entanto, as pessoas sentiam-se tão agradecidas que lhes presenteava com
imagens para sua mesa de curas, que com o passar do tempo foi se enchendo de símbolos de
origem cristã. O agradecimento também vinha em forma de construção de vínculos, sendo
muitas vezes convidada a ser madrinha das crianças que curava ou que fazia o parto. O ato de
receber dinheiro é uma prática altamente condenável entre as rezadeiras. Essa prática, para
elas e outros membros do grupo, não revela idoneidade. E, ainda, não demonstra respeito e
merecimento ao dom dado pelas entidades, correndo o risco de perdê-lo, como consequência
de sua má utilização, no caso, o retorno em dinheiro. O fato de Mãe Jovina ou qualquer outra
curandeira ou rezadeira não cobrar financeiramente por suas curas, contribuiu para a
elevação de seu prestígio.
8
Passar o ramo se refere a uma das técnicas utilizadas durante o processo de cura. Pode ser utilizada como
sinônimo de mandar benzer.
9
A notícia se espalhou.
10
Instrumento utilizado no processo de cura que é feito de ramagens retiradas das plantas descritas com poderes
curativos.
39
No entanto, como ocorre em qualquer relação social, existia a troca e a reciprocidade.
Desse modo, os serviços prestados por ela através das curas eram capitalizados de forma
política. No Ensaio sobre a dádiva, Mauss (200311) descreve que em sociedades pré-letradas
existia um sistema de intercâmbio, desta forma, os indivíduos fazem parte de uma lógica de
interdependência. Contudo, o estudo não se resume a troca em si, mas ao prestígio moral e
social que esta confere ao doador. Importante refletirmos que nesse sentido a vida social está
baseada numa constante dar/receber. Essa constante não está ligada apenas a objetos, mas,
visitas, cerimônias, ao ato de se estabelecer relações.
No caso do grupo em foco, o ato de curar configura-se como a dádiva que estabelece a
ligação com a pessoa curada, em contrapartida, o vínculo estabelecido resulta na
obrigatoriedade de retribuição, seja através de apadrinhamentos ou presentes simbólicos.
Essa reciprocidade iniciada a partir da cura permitiu à curandeira a criação de um constante
círculo de relações mútuas que perpassavam as fronteiras étnicas e, como afirmado,
aumentava o respeito e admiração em torno de sua reputação.
Em uma de nossas idas à campo, Dona Cícera fez questão de nos levar até a grota.
Durante a descida extremamente íngreme ela ia nos falando sobre a casa em que moravam,
sobre os alimentos que hoje são cultivados na descida da grota e sobre o salão de curas, entre
outras coisas. Algumas crianças da aldeia nos acompanharam entusiasmadas, todas atentas às
informações que nos eram passadas. Ansiosas para chegar ao pequeno riacho no final da
caminhada e se refrescarem. Entre as crianças estava Tainara, neta de Dona Joana, que se
destacava por sua maturidade e prestatividade, falaremos mais adiante sobre ela e seu papel na
aldeia. Nesse dia Dona Cícera nos mostrou o ponto preciso da localização de onde ficava o
salão de curas de Mãe Jovina.
11
Original de 1950
40
Imagem 3 – Descida da Grota
Descida da Grota, onde estava localizado o salão de curas de Mãe Jovina – Foto: Tanísia Santos
41
Imagem 4 – Descida da grota e plantação de D. Cícera
Na descida da grota D. Cícera nos mostra com orgulho sua plantação – Foto: Tanísia Santos
Mãe Jovina precisou deixar seu trabalho na roça para se dedicar integralmente às curas.
Os indígenas apontam que em alguns dias não lhe sobrava sequer um momento para se
alimentar, tão grande era a demanda das pessoas. As curas eram direcionadas a todos os tipos
de doenças físicas e espirituais, diferente de outros especialistas que poderiam ter capacidades
limitadas. Essa potencialidade e habilidades de Mãe Jovina em relação a outros especialistas
pode estar relacionada ao fato de que seu dom foi revelado por um mestre espiritual indígena,
sendo ela capaz de intervir em manifestações de loucuras, que Dona Joana revela não fazer.
Esse fato nos indica ainda, que a lógica de saúde perpassa também por um estado de bemestar espiritual. É importante salientar que ao analisar as narrativas, percebemos que o termo
curandeira só é utilizado pelos interlocutores de uma forma geral para se referir a Mãe
Jovina. No caso de Dona Joana, por exemplo, ela se refere a si mesma como rezadeira ou que
vai rezar em alguém. É ainda utilizada a categoria benzedeira, sendo que esta, aparentemente
42
está mais ligada a performance das especialistas, no sentido de que o ato de benzer se refere
as palavras proferidas e aos movimentos realizados no momento da cura. No caso dos
Pankararu analisados por Mura (2013), a categoria benzedeira estaria mais relacionada aos
especialistas rituais que se limitam a passar o ramo, técnica utilizada também por outros
especialistas para fins de diagnóstico ou doenças de fácil resolução. De fato, observamos que
tais reflexões poderiam ser aplicadas para a análise das mesmas categorias no grupo em foco.
Diante do fluxo intenso de pessoas que a procuravam e a dificuldade de acesso ao
lugar onde morava e ao salão de curas, um fazendeiro local resolveu abrir uma estrada para
facilitar o encontro com a curandeira:
Então, os fazendeiros liberaram a estrada e disseram que ela estava fazendo o bem.
[…] abre a estrada todo mundo está vendo que você esta fazendo o bem. Às vezes
chegava quatro, cinco carros, topados de gente, aí chegava lá e ela curava, às vezes
saía da cama e ia curar (Dona Cícera, 2014, Taquarana-AL).
Outro episódio que nos ajuda a visualizar o prestígio de Jovina ocorreu na delegacia da
cidade, como observamos nesse relato:
Comercino: Jovina foi visitar um filho que estava preso, quando chega lá o
delegado colocou ela em confissão o que ela vivia e ela fazia. Ai ela trabalha disse
que trabalha de roça e sou curandeira.
Claudia: Quem falou com Dona Jovina?
Comercino: O delegado com ela.
Comercino: Ele perguntou o que ela fazia de roça e o que mais? sou curandeira.
Então, a senhora vai curar minha cabeça, ela disse agora, balançou o ramo pei pei
pei! O delegado deu maior valor a ela...fosse um preso é família de Jovina agora
chegasse é família de Jovina, volte pra trás (Gumercindo12, 2014, Taquarana-AL).
O episódio narrado nos dá o indicativo da ação política também reconhecida à
curandeira. É descrito pelos interlocutores que ela sempre resolvia essas questões de ordem
política, como evitar a prisão de algum membro da família e de organização no grupo,
evitando possíveis desavenças. Nesse sentido, a presença dela trazia certa coesão, o que
começou a mudar depois de sua morte, com a venda e fragmentação do território. Em algumas
entrevistas, Seu Antônio (esposo de Dona Joana) afirmou que se sua sogra estivesse viva eles
não estariam passando por essa questão da terra, se referindo a ameaça de perda do território e
à autoridade política exercida por Jovina. Esse prestígio hoje é também conferido às suas
filhas.
12
Esposo de Dona Tôta, ver genealogia.
43
As narrativas sobre a eficácia das práticas de cura por ela realizadas, associadas ao
carisma que a caracterizava, nos leva a considerar a construção de uma impecável reputação
moral criada em torno de Mãe Jovina, responsável por atrair pessoas de diversas localidades,
índios ou não índios. Observamos que sua fama e autoridade se espalharam através de seus
conhecimentos especiais de cura, que são valorizados por todos, porque são conhecimentos
específicos e carregados de mistérios. O dom de curar não é dado a qualquer pessoa. Apenas
as pessoas que demostram a adesão aos preceitos morais são escolhidas pelas entidades para a
realização das curas. Isso nos remete a um conhecimento secreto e privilegiado, o que
permite a conferência de tanto prestígio a Mãe Jovina e hoje às suas filhas. Barth (2000), em
seus estudos realizados no sudeste da Ásia e na Melanésia, argumenta sobre o que apresenta
como duas formas diferentes de manejar o conhecimento em duas categorias nativas: o guru e
o iniciador.
Enquanto o iniciador oculta seu conhecimento específico, de origem sobrenatural, o
guru, tem a “incumbência” de falar sobre ele. De acordo com o mesmo autor, para o iniciador,
dentro das tradições de conhecimento que pertence, o conhecimento oculto ou partilhado com
poucos é mais valorizado. O iniciador pode empregar seus saberes restritos em rituais
públicos ou na iniciação dos noviços, mas, não vai ensina-los de forma indiscriminada. Suas
transações ocorrem com “os ancestrais mortos, em troca de benefícios supremos: saúde e
fertilidade” (BARTH, 2000, p. 160). O guru, por outro lado, tem seu conhecimento sustentado
através da transmissão geral de seus conhecimentos, fazendo isso de forma oral. Ele instrui,
ensina, orienta e constrói uma longa relação com seu público, no entanto, seu trabalho acaba
quando consegue transmitir toda a sua mensagem e os benefícios adquiridos por meio dessa
troca.
As duas concepções são importantes e se configuram como formas contrastantes de
gerenciar o conhecimento. No caso dos Xukuru-Kariri de Taquarana, percebemos que a
posição social ocupada por Mãe Jovina é semelhante a do iniciador analisado por Barth
(2000). Nesse sentido, podemos conceber suas curas como o resultado de uma comunicação
privilegiada com as entidades, sem que haja transmissão e reprodução desse conhecimento
verbalmente. “Apenas como iniciador pode transmitir e reproduzir o conhecimento que foi
deixado sob sua guarda, e ele só pode fazê-lo contextualmente, como ação ritual” (BARTH,
2000, p.160). Desse modo, a eficácia das curas tem sua base no segredo. Assim, a atuação
desse tipo de especialista ritual é fundamental para o grupo, pois eles são os únicos que estão
em contato contínuo com as divindades, e suas habilidades possibilitam interação e
interferência no Cosmo.
44
A ligação com as entidades pode permitir a solução de qualquer tipo de desordem
vivenciada pelo grupo. Percebemos que a atuação de Mãe Jovina, assim como as de suas
filhas é vista dessa forma por nossos interlocutores. Mãe Jovina, como descrito, era sempre
chamada a solucionar os problemas de ordem física, espiritual e política. Um dos episódios
descritos acima, em que ela visita um filho na cadeia, ilustra bem essas reflexões, pois quando
o delegado comprova a eficácia de seus conhecimentos, em reverência ao seu saber secreto e
gratidão pela cura, ele não prende mais ninguém de sua família.
As curas por sua vez, são importantes mecanismos impulsionadores na criação de
vínculos. Relevante atentar para o fato de que tais movimentos nessa organização social é
algo essencial para a vida das pessoas. Os vínculos e alianças construídos possibilitam a
partilha de elementos necessários à subsistência do grupo no local, como a troca e doação de
alimentos e a colaboração mútua. Essa se dá na realização de tarefas quando necessárias, na
plantação e colheita de alimentos entre outras. Mantê-los é uma forma de aumentar ainda mais
o prestígio do especialista ritual. Focaremos no próximo capítulo a continuidade da ação ritual
e legitimidade política, exercidas pelas filhas de Dona Jovina.
45
Capítulo 3. As rezadeiras de hoje e a continuidade da ação ritual e política das mulheres
da aldeia Mãe Jovina
As filhas de Mãe Jovina, assim como seus bisnetos Tainara e o Darlinho, também
realizam curas e rezas, cada um a seu modo, como explicitaremos a seguir. Importante
destacar que as irmãs têm concepções diferentes com relação às rezas. Enquanto Dona Cícera
está sempre afirmando sua herança indígena de forma mais destacada, Dona Joana, mesmo
confirmando suas raízes, demonstra mais afinidade com os preceitos e doutrina do
catolicismo.
Dona Joana sempre se remete aos ensinamentos do pai, não índio e devoto de Pe.
Cícero e outros santos e santas católicos, enquanto Dona Cícera enaltece os ensinamentos da
mãe e dos rituais indígenas. Essa postura nos indica a presença de vários fluxos culturais
presentes na aldeia que, ao longo do tempo, passam a ser ressemantizados. Mas, todos os
indígenas que entrevistamos são categóricos ao afirmar que qualquer doença ou problema só
pode ser resolvido através da fé em Deus.
Para eles, Deus está acima de todas as entidades e essa sacralidade é também
transferida para as plantas usadas nas curas, como na prática de passar o ramo, na elaboração
das garrafadas, nas palavras proferidas e nas performances realizadas. Tudo é considerado
sagrado, mas, para que a graça seja alcançada é necessário que quem procura também
acredite, do contrário, como fala Dona Joana, ela não cura porque não adianta13.
Importante ainda abordarmos outro aspecto, o fato de nossas principais interlocutoras
e lideranças políticas no grupo serem mulheres14 e participarem ativamente dos processos de
reivindicação, o que nos faz atentar para a visibilidade do protagonismo feminino nos grupos
indígenas. Esse movimento tem sido uma constante crescente ao longo das últimas décadas.
As mulheres que eram tradicionalmente vinculadas aos espaços domésticos, tinham sua
participação restringida a alguns rituais, sendo muitos de exclusividade masculina e que
exaltavam a etnicidade. Hoje elas os protagonizam.
Atualmente o papel político das mulheres é muito mais destacado, pois se tornou
público. Agora, elas participam de uma visibilidade antes negada. Impulsionadas pelo conflito
da terra e a formação política fornecida pelos parentes, Dona Joana e Dona Cícera que já
atuavam em sua comunidade como referências moral e política, anterior a ele, passam agora a
13
Nesse caso, não adianta se refere ao fato de que o problema continuará sem resolução. Não vai adiantar, não
vai resolver.
14
Utilizamos o termo mulheres e não simplesmente mulher, como um indicativo de uma categoria plural.
Levando em consideração a diversidade dos grupos às quais estão inseridas em suas especificidades. (POSSAS,
2008 apud NASCIMENTO; MARTINS 2012, p. 263).
46
dialogar com órgãos como FUNAI, a participar de seminários, entre outros. Cabe salientar
que por serem especialistas rituais é conferido a elas, um status diferenciado das outras
mulheres do grupo, trazendo-lhes certos privilégios, como, por exemplo, não estarem restritas
aos afazeres domésticos e aos cuidados com a família.
3.1 D. Cícera: A cura que vem do mato
Não foi promessa. Eu juntei as folhas, só, pra fazer a cura.
(D. Cícera 2014)
A casa de Dona Cícera foi o nosso principal ponto de apoio durante todo o tempo de
pesquisa. Nosso marco zero. Era lá que começávamos o trabalho, fazíamos as refeições e
terminávamos o dia, quase sempre em seu terreiro15. Ficávamos sentados em baixo da
mangueira com os outros moradores da aldeia, que se reuniam em círculo para ouvir as
histórias das irmãs. Tinha sempre muitas pessoas circulando pela casa, eram quase sempre
parentes. Aparentemente a mais tímida das irmãs, mas que invariavelmente nos recebia com
entusiasmo.
Como já mencionei na introdução, durante o tempo que fomos ao campo nos
dividíamos entre os interlocutores. Enquanto Ludmila e eu quase sempre indagávamos Dona
Joana, Ítalo e Wemerson quase sempre conversavam com Dona Cícera. Nesse período, Dona
Cícera nunca chegou a confessar diretamente suas curas para nós duas. Mas falava sobre suas
viagens a Juazeiro, suas visitas a Palmeira dos índios, sobre os ensinamentos de sua mãe, da
sua trajetória pessoal e suas relações de parentesco. Falava também sobre os objetos e
símbolos que utilizava como proteção, sempre se remetendo à sua tradição indígena, não
obstante, sempre afirmava sua fé nos santos católicos. Mas quando perguntávamos sobre as
curas, sorria timidamente, abaixava a cabeça e dizia que quem cura é sua irmã, se referindo a
Dona Joana:
Tanísia: Pergunta se Dona Cicera ou as irmãs aprenderam a curar?
Dona Cícera: Eu não, minha irmã dali cura
Filha da Cicera: Qual mãe?
Dona Cicera: a Joana
Rogério: Mas, a senhora num rezou em Eclair
Dona Cicera: hahaha[vozes] ela não cura [risos] (Dona Cícera e Rogério, 2014,
Taquarana-AL).
15
Parte da frente da casa, geralmente ampla e arborizada, como no caso da casa de Dona Cícera.
47
No entanto, observamos que Dona Cícera também curava, só que de forma
aparentemente restrita aos seus parentes indígenas, no caso da cura com rezas. Pois, no geral,
ela cura através de banhos de ervas, chás e garrafadas16. Em uma de nossas entrevistas ela
explica detalhadamente os motivos que a levaram por esse caminho. Conta-nos que estava
doente e o pouco dinheiro que ganhava, mal dava para o sustento de sua filha. Assim,
resolveu buscar no mato17 a solução para os seus males:
O que eu arrumava só dava a conta da farinha e do leite dela. Aí eu pensava: Meu
Deus, eu não vou deixar – a menos que eu morra, de me tratar. [Mas] minha filha
morre de fome [se eu me tratar] que o dinheiro não dá. E se eu deixar minha filha
morrer de fome é que eu me trato, e eu não também quero. Aí pensei. Ganhei os
matos18. Digo: Tem que ganhar uns matos para aqueles chás. Comecei pela cachaça.
Eu bebia. Eu não vou mentir [dizendo] que não bebia, não. Eu bebia tanta cachaça.
Eu só gostava de ir a uma festa pra eu ir sadia e voltar bêbada. Aí andei a andar pelo
meio do mato, pegava aquelas matos assim, botava dentro da cachaça e fazia aquela
garrafada. Era tanta dor que eu sentia. Isso aqui meu era todo inflamado. Aquela dor
no estômago, não podia comer. Peguei pra fazer a garrafada, assim, aí fiquei boa
com a cachaça. Depois uma comadre me disse: Olha, comadre, na cachaça não
presta, não, a senhora faz na água e bebe na água, assim, que é muito bom. Aí eu:
Faço é na cachaça, porque vou trabalhar e já saio com um porre na cabeça. Aí fazia
na cachaça. Pronto. Fui fazendo. Estabeleci. Peguei a fazer, peguei saber, agora vou
ficar pra mim mesmo (2014, Taquarana – AL)
Conforme mais garrafadas fazia, mais pessoas a procuravam, primeiro sua família
depois as pessoas da região. As garrafadas de Dona Cícera apresentam uma relação simbólica
com a natureza, dotada de conhecimento e poder. Como assinala Messeder (2012), retomando
as proposições teóricas de Reesink (1995), existe um saber restrito no ritual, somente
acessado pelos iniciados. As rezadeiras foram devidamente iniciadas, como observado com
Mãe Jovina no capítulo anterior e adiante com Dona Joana. No caso de Dona Cícera, que está
sempre se remetendo as suas raízes indígenas, isso parece bastar, para a manifestação do seu
dom, que descreve ter origem na sua própria necessidade de cura. Mas não deixou de passar
por testes que confirmaram sua eficácia. Pelo que conseguimos compreender, trata-se de um
dom de nascença que foi sendo desenvolvido ao longo do tempo.
Percebemos que existe uma sacralidade no ato de lidar com as plantas. Ela relata que
faz algumas orações e cantos antes de colher determinadas ervas, plantar ou realizar banhos.
Nesse sentido, as plantas são seres, responsáveis por trazer a sabedoria e a cura para os males.
16
Mistura de várias ervas curativas com água ou bebida alcoólica postas numa garrafa para extrair todas as suas
propriedades e posteriormente serem consumidas de forma medicinal.
17
Observamos que Dona Cícera, atribui um significado específico para essa categoria nativa, mato está
relacionado com a natureza, no caso, com a plantação e as ervas. Observamos ainda, que diversas vezes a
palavra também é utilizada pelos indígenas para descrever a região que não faz parte da cidade.
18
A frase explicita que D. Cícera foi buscar nos recursos naturais dados pelo território, a cura para seus males.
48
Apreender esses saberes é o que o Messeder (2012) chama “ciência”. Observamos que a
“ciência”, nesse caso, tem relação com a formação recebida pela rezadeira, seja através dos
sonhos com aparições de ancestrais ou da comunicação com outros especialistas. O caráter
sagrado das plantas de Dona Cícera, aparece em vários de seus relatos, inclusive na própria
nomenclatura dada as plantas ao longo do tempo por povos diversos e citadas por ela, como:
Capim santo, Comigo ninguém pode e Abre Caminho. As nomenclaturas referem-se ainda aos
significados atribuídos às plantas e aos seus poderes. Messeder ressalta:
[...] que o conhecimento emana das plantas, vistas como seres encantados; é uma
“ciência”. Se o mundo vegetal é para nós um mundo vivo, para eles esta condição
ultrapassa o quadro das propriedades orgânicas para se inscrever em uma concepção
de mundo vivo, no qual as plantas são seres espirituais, dotados de conhecimentos e
poder (MESSEDER 2012. p. 33).
Em alguns relatos descreve que tem muita fé em determinados remédios, salientamos
que nesse caso, a palavra remédio, está relacionada a planta e as suas propriedades curativas.
3.2 Dona Joana: fé e dom
Dona Joana é uma das filhas mais novas de Mãe Jovina. É casada com Seu Antônio,
um não índio, totalmente comprometido com os interesses da aldeia. Ele tem uma atuação
extremamente ativa e militante com relação ao território. Nas nossas idas ao campo ele estava
sempre presente, demonstrando intenções de liderança. Em geral, não muito bem aceitas pelo
resto do grupo, já que as lideranças reconhecidas pelos demais Xukuru-Kariri, são Dona
Cícera e Dona Joana.
Em muitas ocasiões durante as entrevistas, ele falava por vários minutos e acabava não
deixando que as mulheres do grupo se expressassem, apresentando desse modo, certa
resistência em lidar com a autonomia das lideranças femininas. Tivemos que intervir algumas
vezes e solicitar que ele nos desse algum tempo com elas.
As curas de Dona Joana são sempre muito recomendadas entre os indígenas, vizinhos
e pessoas de outras regiões. Nos recebia de forma agradável, calma e terna, sempre disposta a
compartilhar sua história e sua experiência com alegria. Muitas das nossas conversas
ocorreram na casa de Dona Cícera e outras no terreiro, próximo a casinha de Pe. Cícero, de
quem é devota. Ela reconhece que usa seus saberes para curar as pessoas que a procura, no
entanto, informa que suas habilidades são diferentes das atribuídas a mãe. Descreve que se a
49
pessoa tiver carregadão19 ela não conhece. Isto é, não consegue identificar com precisão, qual
o problema. Nesse sentido ela se refere as manifestações de loucura, já mencionadas nesse
trabalho.
Imagem 5 – No terreiro de Dona Cícera
Foto: Claudia Mura. Da esquerda para a direita: crianças indígenas, netos de Dona Joana e Dona Cícera e depois
Italo, Ludmila, Tanísia, Wemerson e Dona Joana, no final de um dia de pesquisa, no terreiro de sua irmã.
É explicitado por Dona Joana que desde criança foi aprendendo algumas rezas com sua
mãe, mas que só começou a curar quando ela já havia morrido. Certa ocasião, seu pai estava
doente, com muita dor de cabeça e pediu que ela proferisse ao menos algumas palavras. Mas
ela respondeu de forma negativa e disse que não sabia rezar20. Devido a insistência de seu pai,
rezou. Algumas horas depois o pai foi até ela afirmando que a dor havia passado e que agora
ela podia rezar em outras pessoas.
19
Se estiver carregado de energias negativas provenientes de ações malignas propositais.
Rezar nesse caso é utilizado como uma categoria nativa que indica a ação ritual. Termo muitas vezes
empregado com esse sentido. Observamos que em alguns casos, também pode ser utilizado para descrever o ato
de falar com as entidades. E ainda, muito raramente como sinônimo de benzer, nesse caso, relacionado com a
técnica de passar o ramo.
20
50
Diante do fato, alguém da família avisou que um gato estava engasgado com uma
espinha de peixe e pediu que ela o curasse para confirmar se sabia mesmo rezar, concordando
com o desafio, afirmou que se o animal se restabelecesse, era porque podia rezar nas pessoas.
Passado algum tempo, seus parentes afirmaram que o gato tinha, de fato, sido curado. Após
esse dia, ela não parou mais de promover suas curas, suas rezas, como ela fala.
Para nossa surpresa, nos informou que aprendera a rezar com seu pai, até então nós
sabíamos que a grande curandeira era Mãe Jovina. Saber que o pai de Dona Joana havia
legitimado e que teria passado também esse conhecimento para ela foi inesperado. Dona
Joana não fala muito no assunto, mas suas irmãs e seu esposo, que inclusive fala que ela tem o
mesmo dom da mãe, afirmam que também passou por um período de reclusão. Em ambos os
casos uma das características do período de reclusão são perturbações mentais.
Atualmente observamos o papel das avós também nos processos educativos, como
mencionado abaixo:
Ludmila – Aí você ensina eles a rezar ou...
D. Joana – Ensino, eu ensino a rezar, eu ensino a que responde o povo, eu ensino de
tudo a eles, olhe meu filho num é assim, faça assim, quando vem um mais velho,
num chamar você, pelo nome, é senhor, senhora, se for dá respeito se não... Agora o
que os que são meio danados mesmo, aí responde né? Mas, eu ensino a rezar (D.
Joana, 2015, Taquarana-AL).
A rezadeira prepara alguns de seus netos para serem rezadores, aqueles que ela
reconhece que têm aptidão para o desenvolvimento do dom¹. Perguntamos a Dona Joana
como ela reconhece o dom nas crianças e ela nos fala que estas têm que demonstrar interesse,
tem que ter boa memória e querer aprender. Esse é o caso de Tainara (da qual falaremos de
forma específica adiante) e de outro neto, o Darlinho. Este, à época do trabalho de campo
tinha apenas dois anos, mas Dona Joana nos relatou que um dia ficou muito doente, nas suas
palavras, doente pra morrer! Percebendo a situação e sem que ninguém o direcionasse,
Darlinho tomou a iniciativa de curar a avó. Dona Joana descreve que o dom21 é dado por
Deus, mas, depende do querer da pessoa para desenvolvê-lo. Nesse caso, é preciso que o
especialista ritual aceite o dom depois de ter recebido o chamado.
Mura (2013, p.194) argumenta que “A iniciação é realizada pelo especialista depois
dele ter testado aptidão para se tornar um rezador ou curador. Então começa o trabalho ritual
para a sua habilitação, desvelando a entidade que realizou o trabalho”. Como aconteceu
claramente com Mãe Jovina e Dona Joana nos processos descritos anteriormente, ambas
21
Dom é aqui utilizado como categoria nativa.
51
receberam o chamado das entidades e passaram por um período de “sofrimento” e foram
testadas por outros. No caso de Mãe Jovina, a consulta com um especialista reconhecido
tranquilizou a família e explicou do que se tratava. Mas, tanto mãe quanto filha, como
afirmam as narrativas, tiveram suas habilidades testadas e posteriormente legitimadas pelo
êxito alcançado.
3.3 Tainara: o dom e potencial de liderança política
Desde nossa primeira ida ao campo, durante as oficinas, ficou claro que Tainara tem
uma função importante para a aldeia. Na ocasião, ficou responsável por passar informações
com relação à identidade do grupo. Empunhando um microfone diante de todos que a
observavam atentamente, nos cativando com sua voz, enquanto suas mãos sutilmente
tremulavam ao segurar o papel do discurso. Após sua fala, ouvi quando Raquel, liderança
Xucuru-Kariri de Palmeira, dirigindo-se à menina, falou que era bom ela já saber ler, que
assim já tinha quem fizesse isso por eles, se referindo aos indígenas de Taquarana. Nesse
mesmo dia, ela, junto com outras crianças, extremamente simpáticas, foram mostrar onde era
o início da grota. Gostaram da ideia de fotografar e de apresentar o local.
Tainara, segundo sua avó, já demonstra grande aptidão para ser uma rezadeira, pois é
observadora, tem boa memória e é interesseira (tem vontade de aprender) características
fundamentais para o desenvolvimento do Dom. Nas conversas com sua avó e na observação
da relação estabelecida por elas no cotidiano das atividades, percebemos a dedicação que
Dona Joana oferece à neta para incentivá-la e prepará-la ao desenvolvimento das capacidades
de cura.
Seus parentes de Palmeira dos Índios também já reconheceram suas habilidades e a
menina que no início da pesquisa tinha doze anos, recebe deles outro tipo de preparação.
Trata-se de uma formação política específica, isto é, Tainara está sendo preparada para que,
no futuro, se torne uma liderança política e religiosa, tal qual suas avó e bisavó. Em um de
nossos encontros, ela fez questão de deixar claro que sempre procura reafirmar sua identidade
indígena, especialmente diante da postura preconceituosa de algumas colegas de escola.
Nesse dia, antes de começarmos a gravação, ela nos explicou da maneira mais simples
e objetiva que suas pinturas corporais são parte de sua cultura indígena. E na simplicidade
complexa daquelas palavras ela demonstrava sua certeza de pertencer ao grupo étnico
52
Xukuru-Kariri, e que ela não tem medo de se defender, como podemos observar no fragmento
da entrevista abaixo:
Tainara – Aí eu saí com Monique, só que eu fui pra rua, aí ficou todo mundo
olhando, perguntando se era tatuagem, como eu disse né? Perguntando bem assim:
onde foi que você fez essa tatuagem que eu quero fazer também? Aí ficaram tudo
sorrindo. Eu disse: Eu num ligo não, pode sorrir! Foi!
Tanísia – É porque você mostra que você é indígena. Tu sempre diz isso? Tu
diz?
Tainara – É, sempre eu digo. Aí eles dizem bem assim: Faz em mim também? Aí eu
digo: Eu não posso não. É só isso.
S. Antônio – Tem muita gente que vê e quer fazer, mas, não pode né?
Ludmila – Não pode.
S. Antônio – Num tem condições de fazer.
Tainara – Fica ignorando também muita gente.
Tanísia – Aí tu diz que é uma cultura indígena?
Tainara – É (2015, Taquarana-AL).
3.4 Sonhos, visões e suas implicações.
No contexto focado, temos percebido que os conhecimentos mágico-rituais (parte dos
elementos culturais do grupo) são especialmente valorizados e definem a diferença enaltecida
dos que os possuem. As irmãs recebem conselhos, orientações e aprendem novas rezas a
partir de aparições em sonhos, da mãe, do pai, assim como de outros rezadores índios e não
índios locais que já morreram. Dona Tôta, irmã de Dona Cícera e Dona Joana, nos contou que
não cura, isto é, não tem os saberes específicos de um especialista ritual, como sua mãe e
irmãs, mas que também sonha com sua mãe diversas vezes e que acredita que ela queira lhe
dizer algo importante. As irmãs nos relataram sonhos semelhantes. Por exemplo, sonharam
que Dona Jovina lhes aparece sempre com uma criança nos braços. Antes que perguntássemos
qual o significado desse sonho para Dona Joana, ela rapidamente explicou que uma criança só
pode trazer coisa boa. Para as irmãs os sonhos são sempre muito significativos, como
podemos perceber no trecho abaixo da entrevista:
Ludmila – ô dona Joana você disse que já sonhou com o seu pai, num foi? Te
ensinando uma reza?
D. Joana – Do muito, do muito! Eu sonho com ele...
Ludmila – Do muito?
D. Joana – Eu sonhando né?! Quase todo dia eu vejo o sonho, no caso que eu
comecei rezando, oferecendo terço a alma dele, botasse ele num bom lugar, graças a
Deus nunca mais sonhei com...Mês passado eu sonhei com ele (seu pai), eu sonho
com a minha mãe, agora eu só sonho com a minha mãe com uma criança no braço.
D. Josefa – Pois é eu também.
D. Joana – E é?
Ludmila – A senhora também?
D. Josefa – Eu sonho com ela com uma criança no braço.
53
D. Joana – Uma criança no braço.
D. Josefa – Uma menininha.
D. Joana – É
D. Josefa – Só sonho com ela com uma menininha.
D. Joana – Por vida! Agora eu fico assim pensando: Deus nós só sonhamos com ela
com uma criança, eu só sonho com ela braço com uma criança no braço e só pode
ser bom, né?
D. Josefa – É bom.
D. Joana – Porque uma criança? Uma criança é muito importante pra nós todos da
vida, porque nós só somos vivos por causa das crianças. E essas que tem, que há no
mundo né? Eu acho que assim que... eu acho que pode ser coisa boa.
Tanísia – Mas, ela não ensina não, a senhora rezar no sonho?
D. Joana – A minha mãe?
Tanísia – Sim.
D. Joana – Às vezes ela ensina, o meu pai ensina. Tenho sonhado com muita reza,
muita reza. Ele me ensinando. É. Muitas vezes, às vezes eu sonho assim, eu sonho...
(Dona Joana e Dona Tôta, 2015, Taquarana-AL).
Essas frequentes aparições em sonhos, conforme a fala das interlocutoras nos indicam
que eles são o vínculo, a ponte entre os ancestrais especialistas rituais e as irmãs rezadeiras, o
que legitima os conhecimentos mágicos, que dessa forma não são apenas apreendidos ou
simplesmente decorados, são passados a elas por líderes religiosos do passado já falecidos.
O sonho funciona como uma ponte que liga os antepassados já falecidos às formações
dos conhecimentos rituais passados pelas entidades cultuadas. Um lugar de comunicação
comum, fora do tempo e espaço. A possibilidade de comunicação com o sobrenatural, como
já descrito, é supervalorizada entre os indígenas legitimando a idoneidade das rezadeiras.
As rezas reveladas em sonhos às rezadeiras também fazem parte da sua formação
espiritual ao longo da vida. Desde que sigam os preceitos morais estabelecidos e não deixem
de cumprir seus deveres. No caso Dona Joana, observamos que parte de seus deveres estão
relacionados as orações que faz aos santos católicos, aos pedidos de intercessão feitos em
nome do grupo e ao pagamento das promessas entre outros. O não cumprimento desses resulta
em consequências graves, como doenças.
Os sonhos também são o vínculo com parentes que moram longe da aldeia. Em
diversas ocasiões foi através do sonho que Dona Joana conseguiu identificar e curar – com
base na intercessão de Pe. Cícero a Jesus Cristo, como ela costuma falar – algumas doenças e
problemas espirituais de seus filhos e netos.
Relatou o processo de cura de uma neta recém-nascida que mora em São Paulo. Ao
nascer, a criança tinha dificuldades para respirar e foi levada para a UTI sem que ninguém
soubesse que na verdade ela havia fraturado a clavícula. Vale salientar que, Dona Joana frisou
que os médicos que a atenderam não conseguiram fazer esse diagnóstico. O filho de Dona
Joana entrou em contato com sua mãe, pedindo que ela fizesse uma promessa para que a
54
criança se salvasse. Ela, por sua vez, atendeu ao pedido do filho e durante a noite, enquanto
pedia a intercessão dos santos, teve uma espécie de visão:
Aí eu fiquei assim, cheguei em casa, rezei. Aí pedi: Senhora Santa Quitéria, meu
padrinho Cícero e Nossa Senhora Aparecida do Norte para comparecer um remédio
que voltasse o fôlego dela normal, como os outros né? De noite eu me deitei e o que
foi que eu vi? Um pedacinho de carne, dois pedacinhos de carne comprida.
Tanísia – Sonhando foi?
D. Joana – Sim, num era sonho. Rezei e pedi né? Ai o que eu vi? Dois pedacinhos de
osso, bem... Agora que não era na menina, era num homem. Aí dentro bem pertinho
da junta, aquele pedacinho de osso assim, um pedacinho de carne cumprido e
grossinho e o outro pedacinho de osso pra cima, sendo grossinho também. Aí eu
cheguei, liguei pra casa da Dilene, digo: Dilene, mas, Dilene ... a mãe rezou? Eu
digo: Rezei. A mãe viu, a mãe fez a promessa?Eu digo: fiz com santa Quitéria, pra
ela sair quanto mais rápido mais possível, Aí ela disse assim, disse, eu digo: ô
Dilene, sabe o que foi que eu vi? Ela disse: sim. Eu digo: O que eu vi foram dois
pedacinhos de carne compridos, grossinhos. Ela disse: em onde? Eu disse: no pé da
junta do Quita.
O Quita era homem e o outro pedacinho ele mostrando em cima, outro pedacinho
em cima comprido, grossinho também. Aí no momento, aquele pedacinho , quando
ele me mostrou, aquele pedacinho saiu né? Oxe! Quita, como foi que você cortou
isso aí? Ele disse: aqui só sai cortando. Eu digo: É mesmo Quita? Ele disse: É. Aí
quando foi no outro dia eu vim dizer a menina ali, disse: olha Nêm, a menina está na
UTI, agora você o que é que nós podemos saber o que é da menina? Então o que me
disseram pra nós, ligaram pra nós e disse que tinha sido cocô que a criança tinha
feito na barriga da mãe e a menina tinha engolido. Eu digo: Num tem condições.
Tem?
D. Josefa – Tem não.
D. Joana – Tem Tôta?
D. Josefa – Não.
D. Joana – Num tem condições da menina ficar isso. Eu digo alguma coisa, algum
problema tem. Aí eu cheguei na casa da Dilene, falei pra Dilene, digo: olhe Dilene, o
que pode nós mandarmos dizer pra ele lá, você liga agora, tome o telefone, ligue e
manda dizer pra ele, pra ele fazer ou exame ou um Raio-X pra nós sabermos o que é
que a menina tem, o que acusar da menina, por dentro, porque podia ser por dentro
né?
Tanísia – Ninguém sabia que ela tinha quebrado a clavícula?
D. Joana – Ninguém sabia, nem os doutores não sabiam mesmo. Olhe, o que
aparecer dentro da menina, ou caroço seja lá o que for, que tem menino que nasce
com problema né?
D. Josefa – É.
D. Joana – Eu digo: Então você, ele manda dizer pra nós. Ela disse é mesmo mãe, o
Raio-X é melhor, vamos ligar. Eu digo: Tome o telefone, aí viemos pra ali, eu digo:
bora pra ali conversar. Quando nós ligamos. Ele disse: Ô mãe, e onde é mãe esse
pedacinho de carne? Eu digo: é no corpo da menina. Disse: Em qual parte? É
pertinho da junta do dedo grande do pé. Agora que não é da menina, num é do
menino do Quita, isso vai ser da criança sendo mulher, que é da sua, pode ser da sua.
Ele disse: Mainha é o quê?Eu digo: Dois pedacinhos de carne, comprido, bem
grossinho, afastado de um pra o outro. Ele disse: é mãe amanhã eu vou fazer,
amanhã nós vamos para o doutor, eu estou indo pra lá pra o hospital e vou fazer.
Certo. Eu digo: olhe meu filho, agora quando você fizer o que acusar na menina
você manda dizer pra nós, que pra nós sabermos.
E assim ele fez, foi pra lá, quando chegou lá, fez um Raio-X da menina. O que
acusou: ou foi parteira ou foi enfermeira pegou, aí fraturou isso aqui, a clavícula.
Quer dizer que em tudo que fraturou aí empatou isso aqui olhe (apontando pra
região do tórax) É o fôlego né? (Dona Joana e Dona Tôta, 2015, Taquara-AL).
55
Esse relato é também um indicativo que a distância entre eles se refere apenas ao
espaço, nunca aos vínculos familiares e culturais. Foram descritas ainda outras formas de
comunicação com o sobrenatural, dentre elas destaca-se a participação em rituais, visões e
pressentimentos, este último, foram várias vezes enfatizados por Dona Joana, durante o
campo. Referem-se ao fato dela conseguir sentir, no caso, intuir ou ter alguma percepção de
que uma pessoa doente está para chegar e precisa do seu auxílio. Segundo ela esse sentimento
ou pressentimento, é comunicado pelas entidades religiosas católicas, de quem é devota.
Esse tipo de comunicação não ocorre de forma oral e nem por imagens, para ela as
divindades colocam o sentimento em seu coração22.O que nos denota uma ligação que além
de se ter uma personalidade emocional é direta e forte, significando que sua formação está
indo à contento, em outras palavras que ela consegue honrar o dom recebido e o utiliza com
sabedoria, o que aumenta ainda mais o grau de eficácia e confiabilidade na sua ação ritual.
3.5 Doenças, rezas e curas
As narrativas nos apresentam a existência de diversas doenças, físicas e espirituais e
para cada uma delas, das que Dona Joana e Dona Cícera costumam curar, existe também um
tipo de reza, de procedimento e objetos usados no processo ritual. Com relação às doenças
espirituais estão as causadas por espantação, admiração e olhos maus, são as quizangas23.
Esses são males causados intencionalmente por outras pessoas, através de pensamentos
negativos, inveja ou algum tipo de ação maligna. Sobre essas doenças Dona Joana afirmou
que não cura, diferente de sua mãe, ela não reza em quizangas. Já Dona Cícera afirma a
existência de algumas plantas e banhos que podem afasta-las.
As doenças físicas podem ser dadas por Deus, ocorrendo de forma natural ou podem
ser adquiridas pelo comportamento da pessoa acometida. Quando ela desrespeita um ritual,
não segue os preceitos morais estabelecidos pelo grupo e ainda, se está com a matéria fraca24,
como no caso, de contrair mau-olhado, cobreiro, fogo selvagem, entre outras. Dona Joana nos
explicou que todas essas doenças são de ordem física, isto é, se manifestam no corpo físico,
mas, são resultado de desequilíbrios espirituais, nesse caso, só a reza pode resolver. Assim, os
22
Nesse sentido, Dona Joana se refere aos seus sentimentos e pensamentos individuais.
Para os indígenas, as quizangas são energias extremamente maléficas responsáveis por inúmeros tipos de
doenças, que podem ser fatais ou causar descaminhos na vida das pessoas.
24
A pessoa com matéria fraca não está espiritualmente fortalecido, seja por desrespeitar os preceitos morais
estabelecidos ou por não ter devoção com o sagrado e humildade.
23
56
médicos não teriam conhecimentos específicos para tratá-las. As irmãs ressaltam que a pessoa
doente precisa ter fé em Deus, caso contrário a reza, o banho25 ou a garrafada não funcionam.
Ao falar sobre uma de suas rezas, Dona Joana nos contou a história de um morador
bastante abastado da região que foi a sua procura em busca da cura do cobreiro. Ela o atendeu
apesar de nos deixar claro que ele não gosta de pessoas humildes e simples como ela, mas foi
procurá-la. A rezadeira o recebeu e o benzeu com toda a atenção que dá as pessoas que
buscam sua ajuda, mas quando foi ministrar o óleo de Pequi ele não acreditou na veracidade
do produto e saiu de lá à procura de um médico.
Mas, de acordo com Dona Joana o médico que o atendeu não pôde ajudá-lo, disse que
não existia remédio para o problema dele e apenas uma rezadeira poderia curá-lo. Ela nos
informou que os remédios poderiam apenas trazer um alívio momentâneo das dores, um
paliativo. Ele por sua vez teve uma piora em seu estado de saúde e foi novamente à Aldeia
Mãe Jovina em busca de uma solução. Dona Joana conta que o recebeu novamente com todo
o seu carisma e gentileza e o benzeu e, com o passar dos dias, ele melhorou. Esse fato nos
ajuda entender como os conhecimentos mágico-rituais trazem prestígio e reconhecimento às
rezadeiras.
Tomando por base as elaborações teóricas propostas por Turner (1974), destacamos
que, os rituais de cura presentes no grupo em foco são fomentados por um estado liminar que
por meio de representações simbólicas, fazem com que os indivíduos ou grupos se
ressignifiquem.
Com relação a etnicidade, percebemos que as curas protagonizadas pelas irmãs têm
também um caráter de rememoração étnica. A memória de uma tradição iniciada pela
primeira indígena ao chegar no local, Mãe Jovina, que precisa ser exaltada em favor do
processo de reconstrução identitário.
Nesse sentido, também podemos perceber os rituais de cura como aspectos da
memória presente de Mãe Jovina. Uma herança que, ressignificada, funciona como um norte
para o grupo, um ponto de partida ou de referência comum, para os processos constitutivos da
identidade. Pollak (1989, 1992) argumenta que na construção da identidade impulsionada pela
memória existe o sentimento de unidade física, de se ter fronteiras.
Há a continuidade dentro do tempo e o sentimento de coerência dos diferentes
elementos que formam o indivíduo e o grupo. No caso da Aldeia Mãe Jovina, as experiências
individuais com relação a ação ritual de Mãe Jovina e coesão moral que ela trazia ao grupo
25
Os banhos devem ser tomados em dias específicos e a pessoa precisa adotar certos comportamentos para que o
efeito não seja contrário,como abster-se de relações sexuais.
57
derivada disso, tem elementos comuns aceitos e compartilhados por todos que constroem uma
memória coletiva e com a qual eles se identificam.
58
Capítulo 4. Etnicidade, devoção e ritual: a festa de Padre Cícero
Um dos eventos rituais especialmente ligado ao território e comentado por todos é a
festa de Pe. Cícero que já se tornou parte do calendário ritual anual. É importante explicitar a
relevância de padrinho Cícero, como é chamado pelos povos do nordeste26. Ramos (1998;
2014) descreve como a cidade de Juazeiro atrelada a imagem de padre Cícero passa a se
tornar um lugar sagrado para os devotos. Um ponto de ligação entre o céu e a terra. O autor
foca suas análises na relação de devoção vivenciada pelos romeiros. Pe. Cícero nunca foi
canonizado pela igreja católica, mas é percebido como santo pelos devotos. A ele são
atribuídos diversos milagres e até hoje são dedicadas multidões de romarias à Juazeiro do
Norte em honra desse líder carismático. Com base na construção do santo no imaginário
popular dos devotos (RAMOS, 1998), surgiram muitas narrativas que dão conta de que ele vai
ao auxílio dos aflitos: valei-me meu padrinho Cícero! É a expressão comumente difundida
que denota o pedido de socorro.
Ao ser questionada sobre o padrinho Dona Joana afirma que ele é um santo, mas, em
seguida, retifica e afirma que é uma imagem: uma imagem do céu na terra. Explicitou que, na
sua concepção, ele é uma divindade que interliga céu e terra. Nas elaborações propostas por
Mura (2013), percebemos que na concepção de alguns indígenas Pankararu os padrinhos,
como padre Cícero ou Pedro Batista, não morreram, apenas se mudaram. Assim descreve
Dona Joana ao falar de Padre Cícero, afirmando que ele não morreu, pois ele já é do céu.
Não tivemos a oportunidade de presenciar esse ritual durante o campo, todos os nossos
interlocutores falaram com orgulho da festa do Pe. Cícero e a descreveram de forma
minuciosa. Estes nos indicaram que houve alguns acontecimentos que determinaram sua
realização. Tudo teria começado quando o irmão de Mãe Jovina, José Firmino, decidiu vender
a parte que lhe cabia nas terras ocupadas pela família extensa. Com medo de perder o local
onde nasceu e cresceu, Dona Joana, devota do santo, prometeu que se eles conseguissem
permanecer na terra, todo o ano iria rezar um terço e soltar dez dúzias de fogos em sua
homenagem. E assim ocorre desde então.
No começo as dificuldades foram muitas, Dona Joana relata, pois não tinha as
condições financeiras para realizar a festa e que recebia alguns poucos presentes das pessoas
que ela curava. Apenas com essa ajuda conseguiu realizar sua promessa. A ajuda, nesse caso,
está ligada as relações de cooperação e reciprocidade fomentadas pelas rezas.
26
Ver: RAMOS. Francisco Regís Lopes. O verbo encantado: A construção do pe. Cícero no imaginário dos
devotos. Ijuí, Unijuí, 1998.
59
Com o tempo, o ritual se tornou simbolicamente importante para o grupo. Grandioso e
cheio de significados únicos, dos quais observamos, os sentidos de sagrado, lúdico, festivo e
partilha entre os indígenas. Para as rezadeiras, a intervenção divina de padrinho Cícero, é
responsável pela permanência do grupo no local e pela manutenção da saúde entre outras
situações que veremos a seguir. Dona Joana afirma que vivia muito doente e após a promessa
melhorou, mas afirma que quando passou cinco anos sem pagar a promessa caía sempre
doente, sendo esta para os interlocutores uma consequência da dívida com o santo.
O ritual acontece em agradecimento a ele, mas como discutido, adquiriu outras
funções, dentre elas, a capacidade de também reunir todas as famílias extensas que em busca
de trabalho e sustento acabaram dispersando-se em outros estados, como os filhos que foram
em busca de trabalho em São Paulo ou seus parentes que moram nos povoados vizinhos.
Importante analisar o momento que originou o ritual o que possibilita perceber que a festa,
parece ter o caráter que para Turner (1974), seria uma “communitas” normativa. Esta é uma
característica do estado liminar e surge em momentos de transição radical, como a vivida
pelos indígenas pelo fato do irmão ter vendido as terras e imposto uma nova realidade ao
grupo: a ameaça incumbente de perder seu lar. Nesse sentido, a festa de Pe. Cícero é um ritual
que surge num dado momento específico para o grupo, uma situação de crise e ainda, de
acordo com o autor, o ritual é responsável por trazer o equilíbrio espiritual, como no caso das
curas.
Outra característica da liminaridade comum à communitas, explicitada por Turner
(1974), é o sentimento de igualdade proporcionado nesses momentos. No dia da festa todos os
parentes, índios, não índios, vizinhos, compadres, comadres, se encontram na aldeia. Nossos
interlocutores nos contaram orgulhosos que até autoridades locais, como o prefeito do
município, estavam presentes na última festa. Todos os filhos e netos que saíram da aldeia em
busca de trabalho e os parentes de Palmeira dos Índios se encontram todos os anos na festa de
Pe. Cícero.
Como sugere Barth (2000), as pessoas sustentam sua identidade através do
comportamento público e no caso do evento ritual aqui focado, pode-se afirmar que vem a
desempenhar o papel de grande importância na construção da visibilidade do grupo. Esse
ritual tem a capacidade de agregar a comunidade, manter sólidos os vínculos coletivos e
também dar visibilidade a identidade indígena de seus membros que apenas recentemente
passou a ser reconhecida pelos regionais e pelo órgão indigenista. Com base no
reconhecimento da própria identidade indígena busca-se o reconhecimento legal da terra.
60
Outro fato que chama a nossa atenção é o de que lideranças Xucuru-Kariri de
Taquarana vão pagar promessas, durante a festa na imagem de Pe. Cícero que é guardada por
Dona Joana, essa também é uma forma de demarcar o quanto esses vínculos continuam
sólidos.
Apesar de não termos presenciado a festa, os relatos dos interlocutores nos permitiram
recompor alguns detalhes salientes e compreender melhor sua importância para o grupo. As
narrativas feitas sobre o êxito do ritual são enfatizadas antes, durante e após o ritual. Tornando
ele memorável. O que nos indica um empenho contínuo de demonstração de sua singularidade
para os indígenas. A festa acontece sempre no último sábado de outubro. Nossos
interlocutores explicaram que nesse dia, logo pela manhã, as mulheres varrem os terreiros,
limpam as casas e os homens vão matando os animais que serão servidos à noite. A imagem
de Pe. Cícero fica sob a responsabilidade de uma família da região, que demonstre interesse
em recebê-la. São pessoas que já foram curadas pelas irmãs ou que simplesmente têm um
vínculo de vizinhança com elas. Observamos que receber a imagem de Pe. Cícero confere
certo prestígio às pessoas que devem ter um comportamento respeitoso e uma vida honesta.
Não podem ingerir bebidas alcoólicas, falar palavrões e ainda, devem querer de coração
receber a imagem. Isso significa que a pessoa deve estar moralmente apta para ser digna de
receber a imagem.
Durante todo o dia chegam pessoas de todos os lugares. Os Xukuru-Kariri de Palmeira
dançam o Toré e os parentes se encontram nas casas de Dona Cícera e Dona Joana. O ápice
do ritual é quando eles seguem em romaria da aldeia até a casa onde está a imagem. Durante
todo o percurso as pessoas das redondezas vão fazendo doações de alimentos e dinheiro para
contribuir com o pagamento dos músicos compra de velas, fogos e custear as despesas que
possam vir a surgir.
Após recuperarem a imagem, a levam de volta à casinha de tijolos que fica no centro
da aldeia e funciona como uma espécie de santuário. Nessa casinha sempre são realizados
terços e novenas. A noite segue regada por rezas, danças, leilões, muita comida e bebida. Essa
mostra da fartura está relacionada ao valor simbólico conferido ao alimento. A fartura de
alimentos está ligada a mostra de uma identidade cultural, solidariedade e reciprocidade entre
o grupo. A performance denota grande capital cultural e atribui status ao grupo. A grande
quantidade de alimentos demonstra possibilidade de prosperidade, tendo ainda a função de
fazer o ritual ficar na memória.
A festa de Pe. Cícero como vimos, é um grande produtor simbólico para grupo, como
descreve Messeder (2012), com relação ao Torem, realizado por um grupo Tremembé. A
61
partilha de referências familiares e comuns evocam uma experiência coletiva. Para o autor,
“outras populações indígenas do Nordeste, enfrentando as mesmas questões de afirmações de
legitimidade cultural têm em seus rituais religiosos uma fonte fundamental de elaboração
simbólica” (MESSEDER 2012, p.34). Algo semelhante acontece com o grupo em foco, as
narrativas com relação ao ritual e a tradição inaugurada por ele na aldeia, são notadamente
cheias de entusiasmo. Assim, percebemos que o ritual figure como uma elaboração de
especificidade da aldeia Mãe Jovina. Aparentemente um elemento definidor do que é comum
ao grupo e também o que o diferencia enquanto coletividade, reforçando as fronteiras étnicas.
Imagem 6 – Casinha de Pe. Cícero
Casinha do Pe. Cícero – Foto: Tanísia Santos
4.1 Aspectos cosmológicos
O cosmo desse grupo doméstico Xucuru-Kariri é habitado por diversas entidades
sobrenaturais. Estas estão organizadas de forma hierárquica e são, em sua grande maioria,
extremamente influentes e atuantes no cotidiano dos indígenas e nos processos rituais
realizados pelas rezadeiras. Para os indígenas o território é assombrado, isto é, povoado por
62
seres e criaturas sobrenaturais, mas eles afirmam não ter medo, sendo acostumados a lidar
com elas.
No topo da hierarquia está Deus e Jesus Cristo, que nos relatos dos atores sociais,
aparecem algumas vezes como sendo uma única entidade – o criador de todas as coisas – e de
onde provém todo o poder existente no mundo. Nas palavras de Dona Joana é o Santo
Salvador. Tanto Dona Cícera quanto Dona Joana fazem questão de explicar que não são elas
as responsáveis pelas curas, mas Deus.
Em segundo lugar está Pe. Cícero, o pai que não dorme! Ele aparece sempre como
milagroso e poderoso vigilante, sempre apostos, disposto a ouvir e atender as preces feitas
com fé pelos devotos. E, apesar de Deus estar no ápice do Cosmo, Pe Cícero sempre é
evocado para a resolução de problemas complexos, como os ligados ao território (como
mostramos na festa do santo) e na cura e descoberta de doenças. Observamos que talvez na
concepção dos atores sociais a trajetória de vida dele, faz com que esteja mais próximo dos
necessitados e desempenhe um papel ativo na resolução de suas aflições.
Em um dos relatos, Dona Cícera diz que não existe ninguém mais poderoso que Pe.
Cícero. Entendemos pelo contexto da conversa que ela se referia às pessoas e entidades desse
mundo, no caso que nasceram na terra, que um dia foram humanas. Deus não é desse mundo.
Dona Joana nos explica ainda que Pe. Cícero é uma imagem do céu e da Terra, as imagens
que estão na terra representam o que existe no céu, se ele é venerado na Terra recebe e atende
aos pedidos no céu. Por tanto, analisamos que a imagem de Pe. Cícero é simbolicamente um
vínculo constante entre o céu e a Terra, entre os humanos e o Panteão sagrado.
Como já foi afirmado, tanto Dona Cícera quanto Dona Joana fazem questão de
explicar que não são elas que curam, mas Deus. A fé em Deus e em Padrinho Cícero, como
costumeiramente se referem ao padre considerado santo, é fundamental para as rezas e curas.
Explicação de Dona Joana sobre Deus e a importância de Pe. Cícero:
[...]
Ludmila – Dona Joana você sabe quem foi quem fazia padre Cícero?
D. Joana – Quem faz o padre Cícero?
Ludmila – Quem era assim...
D. Joana – Quem era...
Tanísia – O quê que ele era pra senhora?Um santo, um...
D. Joana – Um santo! Ele é uma imagem.
Tanísia – Uma imagem?
D. Joana – É. É uma imagem.
[...]
D. Joana – Então santo é o da...é o do Céu e da Terra, agora a gente venera esse da
Terra pra nós saber que é ele lá...a gente venera esse da Terra que é pra gente saber
que é ele lá no céu.
63
Tanísia – E o quê que ele pode fazer assim pelas pessoas? Venerando a ele o quê
que ele pode fazer?
D. Joana – Tudo que você pedir de coração, você vê, se tiver doente você vê, se tiver
uma família sua, tudo que você pedir mesmo de coração você vê.
Tanísia – Mas e Deus assim, pode pedir a ele e pedir a Deus também?
D. Joana – Nós podemos pedir a meu padrinho Cícero e pode pedir ao Santo
Salvador.
Tanísia – Aí quem a senhora pedi primeiro, assim? Quando a senhora está com
alguma dificuldade?
D. Joana – Como bem, como eu estou com aquela maior necessidade do mundo de
eu pedir, eu peço o nosso Santo Salvador. Quem é nosso Santo Salvador?
Ludmila – Deus?
D. Joana – Pode me responder?
Ludmila e Tanísia – É Deus?
D. Joana – Né Deus? Nosso Senhor Jesus Cristo, que ele que salva nós todos, o
Brasil todo né? Então...
Tanísia – Aí abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo...
D. Joana -... Nosso Senhor Jesus Cristo, meu padrinho Cícero...(D.Joana, 2015,
Taquarana-AL)
Apesar dessas entidades terem valor enaltecido na hierarquia do cosmo, o relato de
nossas interlocutoras se desdobrou em um número sensível de outras entidades que povoariam
o mesmo. As outras entidades que parecem ocupar a mesma importância na hierarquia são: os
donos do rio; a mãe d’água, que segundo Dona Cícera é a Iemanjá e para Dona Joana é apenas
Mãe d’água, aquela que protege os rios e que determina a água que enche as cacimbas; o
Dono da noite, que por ser tão perigoso nem se quer ousa-se pronunciar seu nome.
Dona Cícera nos explica que para cada um dos Donos tem uma reza adequada. Para
plantar, por exemplo, é necessário que se ofereça a plantação e que se peça licença aos Donos
de Pé de Árvore. Já Dona Joana nos diz que existe o pedido da água para levar água de um
rio, caso não seja feito de maneira adequada, a Mãe d’água pode até matar quem a
desrespeitar.
Trecho de música cantada por Dona Cícera para a Mãe D’água:
Ô Iemanjá, ô Iemanjá, ô Iemanjá
É luz que nos alumeia
Ainda ontem eu vi a Iemanjá
Na beira da praia acessando a areia
A da Iemanjá é essa.
Ô Iemanjá, ô Iemanjá, ô Iemanjá
É luz que nos alumeia
Ainda ontem eu vi a Iemanjá
Na beira da praia acessando a areia. (2014, Taquarana-AL)
Devido à existência e permanência dessas entidades no território, as crianças não
podem e nem desenvolvem nenhuma atividade desacompanhadas. Para alguns atores sociais,
64
para que determinadas ações cotidianas sejam realizadas é necessário que se peça permissão a
essas entidades. Caso contrário, podem se sofrer consequências gravíssimas, como ser
raptadas, ficarem doentes podendo até serem mortas. As características e comportamentos das
entidades descritas se assemelham aos das análises realizadas por Mura (2013) acerca dos
Encantados:
Seriam entidades que manifestariam comportamentos ambíguos, temperamentos
variáveis, como aqueles que dominam a mata e água: por um lado, demonstram
disposição para ajudar e proteger os índios, por exemplo durante a caça e outras
atividades desenvolvidas no território que eles controlam; por outro, podem exigir
algo ou, como afirmaram vários interlocutores, “eles podem querer pegar as crianças
ou os homens” (MURA, 2013 p 172).
Andrade (2002) ressalta ainda que para a manutenção da comunicação com essas
entidades se faz necessário a realização da oferta cotidiana da fumaça, contato com os
encantados e a boa condução das atividades rituais. No caso do grupo doméstico focado, estes
são seres que habitam e protegem a natureza.
Finalmente, existem ainda seres sobrenaturais que já foram humanos. Segundo Dona
Joana, alguns são pessoas que não foram boas em vida e ao morrerem ficaram vagando pelo
mundo, esses são assombrações que assustam ou pregam peças (fazem brincadeiras de gosto
duvidoso) nos moradores. Outros são crianças que morreram pagãs e choram porque
necessitam de um batismo. Dona Joana relata que desde que começou a andar no Ouricuri em
Palmeira, começou a vir a sua porta um passarinho que ela sempre avista lá. Com essa
afirmação, ela pode está se referindo a algum encantado, relatando sua interação específica
com o sobrenatural, nota-se que essa aparição só começou a ocorrer quando da sua
participação em outro circuito ritual, no entanto, não nos aprofundamos com esse assunto
durante o campo.
E ainda existem entidades chamadas bichos. Estes são moradores do cosmo que estão
no final da hierarquia, descritos como os mais assustadores e temidos. Eles são pessoas vivas
que foram alvo de pragas maternas e se transformam em animais perigosos ou são como
explica Dona Joana, maçonarias27, dado o perigo os descreveu minuciosamente, com a ajuda
de Edilene sua filha, que também são pessoas vivas com o corpo revestido de aço, dentes de
ouro, pés de menino novo (bêbe) e possuem ainda um anel de ouro, só são mortos quando
atingidos no umbigo. Outra característica é que eles imitam o choro de crianças para entrar
27
Para D. Joana, maçonarias são seres humanos que podem se transmutarem. Estes são pessoas que levam uma
vida normal, mas, que adquiriram poderes sobrenaturais através de ações malignas.
65
nas casas das pessoas e matar as crianças pequenas que são pagãs (que ainda não foram
batizadas na igreja católica) ou se transformam em animais com o mesmo propósito. Dona
Joana diz que eles entram e chupam o sangue e quem tem menino pagão, ciente disso, não
abre a porta, pois assim, eles vão embora. Nessa concepção o ritual de batismo tem uma
função protetora para as crianças sendo elas indígenas ou não. Inclusive nos narrou
detalhadamente o caso de um maçom que foi morto tentando pegar um bebê de sua vizinha.
Os indígenas descrevem por último, a existência de muitos lobisomens que são homens que se
transformam em lobos, como consequência por ter feito atos ruins. E ainda, as burras-depadre, que só nos contaram serem criaturas perigosas e que podem matar.
No entanto, a maioria desses seres não oferecem riscos, foram pessoas de lá ou de
outras regiões que de alguma maneira apenas aparecem vez por outra no território e
impressionam os moradores ou chamam a atenção dos visitantes. Estes não influenciam
diretamente na vida dos indígenas. Para melhor elucidação da organização do cosmo do grupo
em foco, observe o diagrama abaixo:
Diagrama – Hierarquia cosmológica da Aldeia Mãe Jovina
Deus/Jesus
Padre
Cícero
Mestres
Donos dos rios / noite
/ pé de árvores, Mãe
d'água/Iemanjá
Entidades que já
foram humanas
Bichos
Lobisomens,
burras-depadre
Elaboração nossa.
66
Ao observarmos a variedade de entidades que habitam o cosmos desse grupo
doméstico, fica clara a diversidade de fluxos culturais originários de diferentes tradições,
fazendo com que surjam novas e diversas interpretações que podem ser articuladas entre si,
independentemente de sua origem, seja o fluxo proveniente de tradições Cristã-católica,
africana ou indígena.
4.2 Fluxos culturais e fronteiras sociais
Atualmente, Dona Cícera e Dona Joana, como explicitado ao longo de todo o texto,
também são rezadeiras reconhecidas por todos, no entanto, Dona Joana nos conta que
aprendeu a curar observando as rezas de seu pai e que depois ensinou algumas para sua irmã.
Ao observarmos as práticas rituais das duas, percebemos algumas diferenças na atuação ritual
das irmãs, como descrito no capítulo 2. Percebemos que elas percorreram uma trajetória de
aprendizado diferenciada entre os ensinamentos do pai e da mãe e que agora está sendo
reelaborada. Também percebemos que os símbolos rituais – Deus, padre Cícero, mestres,
donos do mato, Mãe d’agua, bichos, entre outros – são originários de diferentes tradições:
cristã, indígena e africana.
No contexto experiencial focado, os fluxos culturais (HANNERZ, 1997) oriundos
dessas diferentes tradições de conhecimento atravessam a aldeia Mãe Jovina de diversas
maneiras, sejam nas rezas, nos cantos, nas imagens das entidades católicas, nos rosários
usados por Dona Joana, nos símbolos religiosos elevados a sinais diacríticos de uma
identidade indígena, nas pulseiras confeccionadas pelos índios de Palmeira usadas por Dona
Cícera e Dona Joana, nas pinturas indígenas que Tainara (neta de D. Joana) aprendeu a fazer
no corpo, tirando o sumo do jenipapo e que faz questão de deixar claro que isto é um sinal de
sua etnicidade. Nas suas palavras: aquilo quer dizer que ela é indígena.
As elaborações teóricas de Hannerz (1997), acerca da permeabilidade das fronteiras
dos grupos aos fluxos culturais originários de diferentes tradições de conhecimento, nos
oferecem válidas ferramentas para a compreensão das dinâmicas de reelaboração cultural no
contexto focado. O autor defende a ideia da existência de uma articulação contextual dos
fluxos culturais (ideias, conceitos, valores, etc.). Um fluxo não excluiria outro, eles podem
coexistir, circular pelos grupos sociais e, a partir do contexto histórico e político vivenciado
são ressignificados pelos atores sociais.
67
De acordo com Barth (1969, 2005), os grupos étnicos são formados com base nas
diferenças culturais, isto é, escolhem-se alguns elementos culturais que são elevados a sinais
diacríticos, objetivando marcar a distinção entre grupos. Nesses termos, segundo o autor, não
podemos pensar o grupo étnico como um aglomerado de indivíduos que compartilham a
mesma cultura. Segundo ele, que adota uma abordagem interacionista e se distancia das
abordagens essencialistas, a definição de um grupo étnico passa pela construção de uma
fronteira, sendo esta um princípio organizacional, isto é, orienta, limita ou nega a relação de
seus membros com os membros de outros grupos. Portanto, os membros que se
autoidentificam como pertencentes ao grupo étnico, não necessariamente compartilham da
mesma cultura, em virtude também de outros princípios organizacionais que determinam a
distribuição da cultura como, por exemplo, o gênero e a idade.
68
Considerações finais
O estranhamento proposto pela antropologia permitiu-me um olhar disciplinado diante
da questão indígena. A minha própria trajetória remete a um pensamento inicial de senso
comum, de um índio cristalizado no tempo e estereotipado. A quebra ou desconstrução dessa
visão, oportunizada pela apreensão de elementos teóricos específicos, originou uma
inquietação incessante que, a principio, culminou nos resultados dessa pesquisa, mas sei que
me acompanhará durante toda a vida.
O grupo analisado passa por um processo que, infelizmente, é corriqueiro: o conflito
territorial e a luta pelo reconhecimento. Digo infelizmente, pois esses conflitos geralmente são
originados por situações violentas, impostas pelo Estado ou por particulares. No caso dos
indígenas da Aldeia Mãe Jovina, a ameaça de perder o território alavancou o início de um
processo de reconhecimento étnico e de reelaboração cultural. Os indígenas, orientados por
seus parentes de Palmeira dos Índios, passaram a reivindicar o reconhecimento de sua
diferenciada identidade étnica e o direito à sua terra.
Turner (1974) argumenta que o processo ritual é capaz de evocar o sentimento de
igualdade e permite a volta à harmonia quando num momento de crise. Nesse caso, a festa de
padre Cícero demonstra esse potencial agregador. E ainda, contribui para a força emocional
da identidade étnica. Podemos entender padre Cícero como um símbolo multivocal, que no
momento da festa se etnifica, podendo em outras situações ter novos significados atribuídos.
Percebemos que os rituais de cura realizados pelas rezadeiras, são entendidos pela
população em geral, índios ou não índios, como responsáveis por trazê-los de volta ao
equilíbrio espiritual perturbado por alguma doença, seja ela dada por Deus, fruto de alguma
ação maligna ou consequência de seus próprios atos. Mas, são ainda componentes de uma
fantástica visão de mundo apresentada pelos interlocutores, assim como os seres sobrenaturais
retratados na hierarquia cosmológica do grupo, que dentre outras situações explicitadas no
texto, também compartilham o espaço físico do território com os indígenas.
O conhecimento específico das rezadeiras, que remete à herança indígena de Mãe
Jovina, mas que também é ressignificado a partir do contexto de vivência atual, é responsável
por trazer-lhes prestígio, autoridade política e religiosa. O reconhecimento social de tais
características se alimenta cotidianamente na cooperação e reciprocidade entre os indivíduos
envolvidos. Importante também ressaltar a visibilidade dada a atuação dessas protagonistas
femininas, que se destacam com autonomia dentre os homens da aldeia, ainda que alguns
demonstrem resistência em lidar com a liderança reconhecida a elas.
69
A importância dada aos rituais pelos interlocutores no decorrer das reivindicações, nos
fez perceber que estas práticas estão no centro do processo de construção identitária. Os
conhecimentos que nos rituais são ativados e mostrados publicamente passam por uma
ressignificação que enfatiza sua origem indígena. Como vimos, são apresentados como uma
herança de Mãe Jovina, a primeira indígena e curandeira que se instalou na terra atualmente
reivindicada.
A reelaboração da memória e a ressignificação dos elementos culturais que circulam
no grupo são carregados de valor simbólico e contribuem para o sentimento de pertencimento
ao grupo indígena Xukuru-Kariri, bem como mobilizam seus membros na luta para o
reconhecimento de seus direitos à terra.
70
Referências bibliográficas
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72
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FAZENDO O GÊNERO 11, Florianópolis : 2017
73
ANEXO – Genealogia
74
Genograma 1 - Família extensa de Jovina e Antônio Camilo
Antônio
Camilo
da Silva
Gumercindo Josefa
Camilo da
Silva (Tôta)
Antônio
Neto
Sebastião
Joana
Camilo
da Silva
Claudemir Zenilda Vânio Roseane Josefa Josefa Edlene Edna Ednaldo Edilson José Edmilson Cícero
(Sinha) (Nana)
Milton
Bezinha
Luciano Lucinha LetoLuciana Rosineide Neide Zé
Josefa Cícero
Camilo
da Silva
Cícero
Maria Cícero José ErivaldoEduardo Geilsa
de
(Tito) Carlos
Fátima
Simbolos do
Genograma
José
Camilo
da Silva
Chiquinha
Zé GoreteTarcísio ?
Naldo
Dorgival
Aureliano
de Souza
Falecimento
Iraci Ireno Amara Geilsa João José Inácio
(Cutila)
José Sueli Zé Cícero Ed Bil Nenci
Damião
(Zé preto)
Cícera
Camilo
da Silva
Edleide
Aureliano
de Souza
Legenda
Casados
Divorciado
Feminino
Maria
Camilo da
Silva (Nêga)
Zezé Antônio Camilo ?
da Silva Filho
(Pininga)
Separado de fato
Masculino
Jovina Maria
Júlio da
Conceição
Vivendo juntos
75
Genograma 2 - Família extensa de D.Cícera
Antônio Jovina Maria
Camilo
Júlio da
da Silva Conceição
Cícero
Júnior
Wanderson
Adrian
Dorgival
Aureliano
de Souza
Galêgo
Wesley
Edleide José Damião Zenilda
Camilo de (Zé Preto) (adotiva)
Souza
Adotivo
Wiliane
Simbolos do
Genograma
Masculino
Cícera
Camilo
da Silva
Feminino Falecimento
Legenda
Casados
Separado de fato
Divorciado
Vivendo juntos
Mora ou foram adotados por
Cícera
? Edelma Camilo do
Nascimento
(adotiva) (Coruripe)
? Patrícia do Nascimento Rosimeire Luizinho Maria
de Souza(Palmeira dos
Luiza
Índios)
Maria
Isabele de
Queiroz
Raí
?
?
76
Genograma 3 - Família extensa de D. Joana
Antônio
Camilo
da Silva
Antônio
Neto
Ednaldo Damiana José Edmilson
(SP)
Milton
(SP)
Darlinho
Joana
Camilo
da Silva
Maria
Sineide
Cícero
José
Carlinhos Amanda
Armando
Simbolos do
Genograma
Masculino
Jovina Maria
Júlio da
Conceição
Feminino Falecimento
Legenda
Casados
Separado de fato
Vivendo juntos
Mora ou foram adotados por
Joana
Edilson
(SP)
Samuel
Júnior
Evelin
Joel
Francisco
Marlison Wilames Joélio
Tinga
Tainara
Edna
Silmara
Edlene
77
Genograma 4 - Família extensa de D. Josefa (Tôta)
Antônio Jovina Maria
Camilo
Júlio da
da Silva C:onceição
Gumercino
Claudemir ? Zenilda
Josefa
Camilo da
Silva (Tôta)
Vânio Alef Roseane Roseni
José
Valmir
Josefa
(Sinha)
Vitor Andressa
Simbolos do
Genograma
Masculino
Feminino Falecimento
Legenda
Casado
Separado de fato
Vivendo juntos
Cícero
Zé
Josefa
(Nana)
Clara
Clarissa Danilo
